sábado, 29 de janeiro de 2011

Fonte Histórica (6). Analisando Fontes Dialógicas

Entenderemos como ‘fontes dialógicas’ aquelas que envolvem, ou circunscrevem dentro de si, vozes sociais diversas. O dialogismo de uma fonte é ao mesmo tempo um limite e uma riqueza: o historiador deve aprender a lidar com isto. No limite, é claro, toda fonte – como todo texto – comporta uma margem de dialogismo, pois se acompanharmos as reflexões de Mikhail Bakhtin, em seu ensaio 'Estética e Criação Verbal', não há rigorosamente falando textos que não estejam mergulhados em uma rede de intertextualidades, isto é, em um diálogo com outros textos. O ato mesmo de analisar um texto, assevera-nos Eliseo Verón em seu livro A Produção do Sentido, já introduz algum tipo de dialogismo: pois não é possível analisar um texto em si mesmo, e mesmo que sem perceber o analista está comparando sempre o texto de sua análise com outro texto. Mas não é deste tipo de dialogismo que estaremos falando neste momento, e sim das fontes históricas que apresentam uma forma mais intensa de dialogismo em decorrência da própria maneira como estão estruturadas, ou em função dos próprios objetivos que as materializaram.

Fontes Dialógicas por excelência, entre várias outras, são os processos criminais e processos inquisitoriais – que envolvem depoimentos de réus, testemunhas e acusadores, mas também a figura destes mediadores que são os delegados de polícia e os inquisidores, e também os advogados para o caso dos processos jurídicos modernos. Também são fontes, além de dialógicas, “intensivas” – fontes que buscam apreender e dar a perceber muitos detalhes, particularmente os que passariam despercebidos ou aos quais em outra situação não se dá importância (lembremos os investigadores criminais vasculhando as latas de lixo). Também os processos apresentam um esforço de compreender a fala de um outro, de dar a compreender esta fala, embora também envolvam a manipulação da fala.

Para o Brasil do período colonial, constituem fontes dialógicas de grande porte os Livros de Devassas, produzidos pelas Visitações do Santo Ofício da Inquisição. Alguns historiadores brasileiros os utilizaram amplamente, tal como Laura de Melo e Souza, em sua investigação historiográfica intitulada 'O Diabo e a Terra de Santa Cruz' (1994). Tal como veremos oportunamente, fontes como estas – dada a sua intensividade, ou a sua capacidade de apreender e expor ao pesquisador um grande número de detalhes e de relações dialógicas inter-individuais em um contexto intensificado – proporcionam a rara possibilidade de se empreender um apurado rastreamento do cotidiano, do imaginário e dos ambientes de sociabilidade relativos. Da mais recôndita intimidade do lar e das secretas conversas das alcovas à exposição da agitada vida humana que transita nas ruas, a leitura de processos como estes pode ir aos poucos descortinando os ambientes de sociabilidade, e ir revelando não apenas a vida concreta e cotidiana – com seus modos de alimentação, indumentária, cultura material, hábitos e fórmulas de comunicação – mas também a vida imaginária e as formas de sensibilidade: os medos, crenças, esperanças, invejas, desalentos e desesperos.

O mesmo ocorre para os processos criminais do período moderno. Importante se ter em vista que, nestes casos, é de menor importância chegar a conclusões sobre as razões de um crime ou a culpabilidade do réu. A função do historiador não é a de desvendar crimes – tarefa do delegado de polícia – nem tampouco emitir julgamentos sobre o mesmo. Um processo, como uma devassa inquisitorial, permite rastrear a vida de testemunhas, vítimas e réus. Através do registro intensivo deste tipo de fontes, o historiador pode recuperar o dia-a-dia de anônimos do passado aos quais não teria acesso por outros meios. Em seu texto “O Dia da Caça”, um dos pioneiros do Brasil no que se refere a esta abordagem, o sociólogo José de Souza Martins se põe a acompanhar os passos do réu no seu dia-a-dia, seguindo ele mesmo os passos do delegado que tenta recuperar “o percurso trágico do criminoso, nos dias e horas que antecederam o crime” (MARTINS, 1992, p.301). De nossa parte, podemos acompanhá-lo, como leitores, na sua paciente montagem de um mapa que revela os vários trajetos diários do operário que é acusado do crime. É esta instigante interposição de mediadores – leitor, autor, delegado, depoentes, personagens da cena-crime – cada um seguindo os passos do outro em uma autêntica arqueologia de textos que se recobrem uns aos outros, o que traz a estas fontes uma espécie de ‘dialogismo transversal’. Mas é também na multiplicação das vozes no plano sincrônico – correspondente no contexto mais imediato do próprio crime à contraposição das vozes do réu, das testemunhas, das vítimas – que iremos encontrar o dialogismo final, constituinte da trama que corresponde à última camada arqueológica que o processo criminal nos oferece.

O dialogismo presente nas fontes processuais, as diferentes versões que através delas se conflituam, as visões de mundo que os atores sociais encaminham uns contra os outros, as redes de rivalidades e solidariedades que daí emergem, as identidades e preconceitos, é todo este vasto e dialógico universo – não apenas capaz de elucidar as relações inter-individuais, como também de esclarecer a respeito das relações de classe – o que se mostra como principal objeto de investigação para a análise micro-historiográfica que se torna possível a partir deste tipo de fontes .
Além dos processos criminais, jurídicos e inquisitoriais, há vários outros tipos de fontes dialógicas. Existem inclusive as fontes de ‘dialogismo implícito’, aquelas que dão voz a indivíduos ou grupos sociais pelas suas margens, pelos seus contracantos, ou mesmo através dos seus silêncios e exclusões. Assim, por exemplo, o período do escravismo colonial no Brasil conhece a prática do estabelecimento de “irmandades” (de homens negros, pardos, brancos, escravos ou libertos, de portugueses ou brasileiros). Análogas às confrarias medievais no que se refere ao fato de que acomodavam dentro de si grupos de indivíduos em quadros auxiliares de sociabilidade e solidariedade, elas cortavam a sociedade a partir de um novo padrão. O que nos interessa para falar do dialogismo implícito são as suas cartas de compromisso, as suas atas, os documentos que revelam seus procedimentos de inclusão e de exclusão. No interior da população africana ou afro-descendente que havia sido escravizada, elas deixam entrever os diversos grupos identitários que se escondem sob o rótulo do “negro”.

João José Reis, que as estudou em detalhe, observa o estabelecimento de uma discreta arena de disputas inter-étnicas na Irmandade do Rosário dos Pretos da Igreja da Conceição da Praia, na Bahia de 1686. Dela participavam irmãos e irmãs angolanos e crioulos (negros nascidos no Brasil) na época de seu primeiro compromisso. “Embora sem explicitar isto, previa-se a entrada de gente de outras origens, inclusive os brancos e mulatos, mas só crioulos e angolas eram elegíveis, em números iguais, a cargos de direção” (REIS, 1996, p.14). Já na Irmandade do Rosário da Rua de João Pereira, a associação se estabelecia entre benguelas e jejes. O que nos revelam estas fontes em termos de vozes sociais? Através delas, dos seus termos de compromisso e documentação corrente, os grupos sociais e as identidades são postas a falar, mesmo as que são silenciadas através da exclusão. O poder é partilhado por grupos específicos dentro da escravaria mais ampla. Algumas outras identidades são aceitas, mas em um segundo plano; outras são excluídas. As redes de solidariedade e as rivalidades terminam por falar. Mesmo quando silenciados através da exclusão, alguns grupos deixam soar a sua voz, nem que seja para dar a entender que são odiados, temidos, desprezados, ou que, de sua parte, também odeiam e desprezam. O grupo social aparentemente unificado pela cor, como queria o branco colonizador, revela através do dialogismo implícito a sua pluralidade de vozes internas.

Vamos nos referir em seguida à fontes de ‘dialogismo explícito’, como é o caso daquelas fontes nas quais um determinado agente ocupou-se de pôr por escrito as falas de outros. Elas são dialógicas não apenas porque são várias estas “falas de outros”, mas também porque o mediador, o compilador da fonte ou o agente discursivo que elabora um texto sobre o texto, representa ele mesmo também uma voz (quando não um complexo de várias vozes, já que através do mediador pode estar falando também uma instituição, uma prática estabelecida, uma comunidade profissional, para além de sua própria fala pessoal). Com base nestes aspectos, podemos definir as fontes relativas ao “dialogismo explícito” como aquelas que são atravessadas de maneira mais contundente por um mediador que tem a consciência de estar situado diante de uma alteridade, diante da necessidade de uma mediação, de uma ‘tradução do outro’ que precisará ser feita em si mesmo e depois, possivelmente, oferecida a novos leitores.

Os relatos de viagem, por exemplo, comportam a sua margem de dialogismo. Pensemos naqueles viajantes europeus que estiveram percorrendo a África, a América do Sul e particularmente o Brasil – pois essa era uma nova moda romântica bastante em voga no século XIX. Estes viajantes entram em contato com culturas que lhes são totalmente estranhas, e fazem um esforço sincero de transmitir a um leitor – que eles idealizam sentado confortavelmente em uma residência européia – as estranhezas que presenciaram, as bravatas e desafios que tiveram de enfrentar por serem europeus aventureiros em terras tropicais e selvagens, ou em cidades rústicas, habitadas por novos tipos sociais tão desconhecidos deles como de seus leitores. Marco Pólo, no seu Livro das Maravilhas, escrito no século XIII, já trazia à literatura o seu próprio relato de viagens, nos quais descortinava aos seus leitores europeus um mundo completamente distinto de tudo o que eles até então haviam visto. A China e outras terras do oriente surge nos seus relatos com toda a sua imponência dialógica, beneficiando os europeus de sua época de um choque de alteridade que mais tarde lhes seria muito útil, quando precisaram submeter as populações incas, maias e astecas nas Américas do século XVI.

Exemplos particularmente interessantes de fontes dialógicas, de que não trataremos neste momento, são as organizações mediadas de “falas dos vencidos”. É o caso dos depoimentos de astecas que sofreram impactos da Conquista da América, no século XVI, e que foram elaborados pelos próprios astecas sob a orientação do padre jesuíta Sahagún. Estas fontes, habitualmente conhecidas como “os informantes de Sahagún’, pretendem dar voz aos astecas que foram vencidos e massacrados pelos conquistadores espanhóis liderados por Hernán Cortez, no século XVI. Ao serem elaboradas tanto no idioma nativo como em espanhol, estas fontes não apenas procuram dar voz a uma cultura, mas também superpõem-lhe um outro texto, uma outra cultura e uma outra visão de mundo: a do padre jesuíta que, por mais bem intencionado que estivesse em dar voz aos vencidos, não tem como extrair-se, a si mesmo, do discurso dos astecas a cujas falas ele traz uma organização.

Antes de prosseguirmos, podemos nos perguntar: o que se precisa ou pode-se aprender com estes tipos de fontes que são as ‘fontes dialógicas’. Diremos inicialmente que aqui será necessário um novo talento: o “talento arqueológico”. Não nos referimos porém à capacidade de lidar com as diferentes camadas de terra, mas a algo ainda mais sutil: a habilidade de decifrar diferentes camadas de filtragens. O talento de perceber uma coisa a partir da outra é desde já, de alguma maneira, uma habilidade polifônica (a mesma que se torna necessária ao ouvinte de música que se põe a escutar composições musicais constituídas por várias vozes que avançam paralelamente, uma por sobre a outra, como nas composições de Johan Sebastian Bach).
As fontes produzidas por missionários, como o padre jesuíta Sahagún, sempre colocam em pauta o dialogismo, e este também será o caso das fontes que foram trabalhadas pelo etno-historiador Richard Price em seu livro Alabi’s World (1990), um texto que recebeu de Eric Hobsbawm alguns interessantes comentários críticos sobre o uso de fontes históricas – particularmente sobre as fontes dialógicas – no texto intitulado “Pós-Modernismo na Floresta”. Vale a pena refletir sobre este texto, e também sobre os comentários de Hobsbawm, pois ele nos servirão como ponto de partida para elucidar alguns cuidados e potencialidades metodológicas envolvidos no trabalho com as fontes dialógicas.

O estudo de Richard Price no ensaio em questão dirige-se às sociedades saramakas, que foram constituídas no Suriname nos séculos XVIII e XIX a partir de quilombolas que conseguiram se apartar do Sistema Escravista e construir uma sociedade em novas bases no interior daquela região sul-americana. Os suramakas, os “negros da mata” do Suriname, não eram cristãos na sua maioria; mas com eles tiveram de interagir os missionários Morávios, nas suas tentativas de evangelização. Estes últimos produziram extensa documentação a respeito da sociedade saramaka da qual se utilizou Richard Price, com vistas à elaboração de sua pesquisa e análise. Dois problemas surgem, e aqui o tomaremos como exemplificação acerca de problemas a serem enfrentados pelos historiadores de hoje no trato com as suas fontes. Os irmãos morávios, conservadores e ultra-religiosos, deixam inevitavelmente transparecer nas fontes o seu fracasso em compreender aquela estranha sociedade saramaka que pretendiam catequizar. Eles enxergam o mundo saramaka a partir do seu próprio filtro, da sua própria visão de mundo, e, ainda que sinceros no seu esforço de compreender a alteridade com a qual se defrontam, enfrentam a óbvia dificuldade de estarem presos a horizontes mentais que não lhes permitem compreender adequadamente certos aspectos da sociedade saramaka.

Por outro lado, um outro filtro deve ser enfrentado pelo historiador que hoje toma as correspondências dos missionários morávios como fontes para compreender as sociedades saramakas do Suriname da segunda metade do século XVIII. Tal como Hobsbawm assinala, e colocaremos suas palavras entre aspas, para os pesquisadores modernos “a visão de mundo de fanáticos carolas como os morávios, com seu culto sensual e quase erótico das chagas de Cristo, é certamente menos compreensível que a visão de mundo dos ex-escravos” (HOBSBAWM, 1990, p.47-48). Desta maneira, e apenas destacamos esta obra a título de exemplificação, o problema historiográfico de análise das fontes assim se coloca em um dos aspectos para o qual mais devem estar atentos os historiadores de hoje: lidar com uma Fonte (ou constituí-la) implica em lidar com filtros, com mediações, inclusive as que fazem parte da própria subjetividade e condições culturais do pesquisador que examina o outro, a partir do outro.

Considerações análogas são desenvolvidas por Carlo Ginzburg em seu famoso texto “O Historiador como Antropólogo”, escrito em 1989. Toma-se como ponto de partida o mesmo problema metodológico enfrentado por Richard Price na obra citada anteriormente: trata-se de dar um uso historiográfico a registros escritos de produções orais – no caso específico de Carlo Ginzburg, as fontes inquisitoriais do início da Idade Moderna. As fontes inquisitoriais – que nos trabalhos de Ginzburg adquirem um novo sentido ao se ultrapassar o antigo enfoque nas “perseguições” em favor do enfoque no discurso – apresentam precisamente a especificidade de serem mediadas pelos “inquisidores”. Ou seja, para se chegar ao mundo dos acusados, é preciso atravessar esse filtro que é ponto de vista do inquisidor do século XVI; é necessário empreender o esforço de compreender um mundo através de outro, de modo que temos aqui três pólos dialógicos a serem considerados: o historiador, o “inquisidor-antropólogo”, o réu acusado de práticas de feitiçaria.

O limite da fonte – o desafio a ser enfrentado – é o fato de que o historiador deverá lidar com a “contaminação de estereótipos”. Mas uma riqueza da mesma documentação é a forma de registro intensivo que é trazida pelas fontes inquisitoriais – uma documentação atenta aos detalhes, às margens do discurso, e fundada sobre um olhar microscópico – isto, para além do forte dialogismo presente, seja de forma explícita ou implícita. Quanto à estratégia metodológica que aproxima inquisidores do século XVI e antropólogos modernos, a que dá o título ao artigo, é exatamente a de traduzir uma cultura diferente por um código mais claro ou familiar (GINZBURG, 1994, p.212).

O que nos ensina Ginzburg com o seu trabalho historiográfico sobre estas fontes, e com suas reflexões teóricas sobre as mesmas? Antes do mais, fica claro que o historiador deve formular indagações sobre os seus mediadores, para compreender tanto os seus “filtros” como para fazer a crítica de autenticidade e veracidade relacionada à sua mediação dos depoimentos dos réus. Fica claro para o autor, e esta é já uma resposta à indagação inicial, que existe no inquisidor uma vontade real de compreender, o que o leva a inquirir o detalhe e a dar efetiva voz ao acusado. Ao mesmo tempo, a este inquisidor – em que pese o seu desejo de apreender o ponto de vista do réu – nada resta senão tentar entender os depoimentos ou a cultura investigada adaptando-os às suas próprias chaves e estereótipos. A fonte inquisitorial, por estes dois fatores, torna-se intensamente dialógica (isto é: ela envolve o diálogo entre muitas vozes sociais).

O texto “O Inquisidor como Antropólogo” (1989) inicia-se com um pequeno balanço de Carlo Ginzburg sobre a apropriação historiográfica das fontes da Inquisição. Um historiador, ao aproximar-se de suas fontes, não se obriga necessariamente a historiar o uso historiográfico que até aquele momento foi feito de suas fontes, mas em todo o caso esta poderia ser uma boa recomendação metodológica. Estender um olhar sobre a historiografia que precede o próprio historiador com relação ao seu tema e ao uso historiográfico de suas fontes, permite que o historiador aprofunde a consciência histórica sobre si mesmo: saber em que ponto situa-se o seu trabalho, ao lado e contra que campos de possibilidades, diante de que redes intertextuais e inter-historiográficas. Os modos como pretende se aproximar de suas fontes repete experiências anteriores, aprimora-as, inverte-as, recusa-as em favor de novas direções?

O Quadro 3 propõe-se a sugerir um roteiro para o tratamento de fontes dialógicas. Os itens indicados não necessariamente precisam ser percorridos como etapas, e não apresentam uma ordem fixa; alguns são mesmo opcionais. O primeiro item que comentaremos é um destes que apresentamos como alternativo, mas de todo modo o deixaremos como sugestão. Trata-se de traçar, tão dedicadamente quanto possível, um pequeno histórico do tratamento historiográfico até então dispensado às fontes que agora tomamos como nosso corpus documental. As perguntas colocadas acima, em nosso entender, trazem maior consciência historiográfica sobre o tema. Ela são colocadas para a historiografia, e não para as próprias fontes ou para a realidade vivida a que se referem as fontes – o que será feito em outros itens.

Vamos retomar um pouco o texto de Ginzburg, no sentido de aprender um pouco com este micro-historiador italiano. Ele nos conta logo no início do artigo que é (surpreendentemente) tardia a descoberta dos arquivos da Inquisição para finalidades historiográficas (1994, p.203). Os primeiros historiadores da Inquisição se aproximaram da temática da Inquisição de uma perspectiva da ‘história da repressão inquisitorial’; e foi sob a limitação imposta por este horizonte de expectativas que buscaram apreender as fontes que poderiam ser constituídas pelos processos da Inquisição – dezenas de milhares na Itália, e cerca de dois mil processos de julgamentos inquisitoriais só no Friuli, que foi o universo investigado por Ginzburg. Eram de um lado historiadores protestantes de período posterior, que desejavam iluminar o heroísmo de seus antecessores frente à perseguição católica; ou que estavam interessados em revelar traços da crueldade dos repressores que pertenciam à tradição adversária. De outro lado, os historiadores que assumiam a perspectiva de uma História da Igreja Católica eram compreensivamente relutantes em se aproximar historiograficamente daqueles processos, tanto porque lhes era algo penoso descortinar o papel de seus irmãos de fé como torturadores, ainda que de hereges, como porque tendiam ou pretendiam “minimizar o Impacto da Reforma”, para aqui retomar uma observação do próprio Carlo Ginzburg (1994, p.204). Por fim, os historiadores liberais, que não se posicionavam religiosamente ou eclesiasticamente, também não se interessavam pelos processos de inquisição. Ginzburg nos explica por que:


“Sempre se considerou que as provas de bruxaria, fornecidas pelos julgamentos, eram um misto de extravagâncias teológicas e superstições populares. Estas eram, por definição, irrelevantes; aquelas podiam ser mais facilmente encaradas nos tratados demonológicos. Para os estudiosos que pensavam que o único tema histórico ‘válido’ era a perseguição, e não o seu objeto, percorrer as longas e muito provavelmente repetitivas confissões dos homens e das mulheres acusados de feitiçaria era, de fato, uma tarefa fastidiosa e inútil” (GINZBURG, 1994, p.204)


Ginzburg coloca com particular clareza o problema, neste pequeno balanço inicial da ‘história da apropriação historiográfica das fontes inquisitoriais’. Esta história – paralela a história de como a bruxaria “passou da periferia para o centro das questões históricas ‘válidas’” (GINZBURG, 1994, p.205) – mostra-nos nos seus primeiros momentos um interesse meramente eclesiástico (a favor ou contra a Reforma). Trata-se de uma apropriação historiográfica das fontes que é realizada ainda da perspectiva de uma história eclesial – de uma História da Igreja, examinada por um lado ou pelo outro – e não ainda da perspectiva de uma história religiosa, de uma história da religiosidade, e muito menos de uma ‘história do discurso religioso’, para não falar das possibilidades de uma ‘história cultural’ que toma estas fontes inquisitoriais como um caminho interessante para indagar sobre muitas outras coisas para além da religião ou das práticas religiosas em si mesmas.
O que nos mostra Ginzburg no seu balanço é que uma nova pergunta ou uma nova ênfase podem abrir significativos e inusitados caminhos para a exploração de novas potencialidades em uma Fonte ou tipo de fonte. Na história da apropriação historiográfica das fontes inquisitoriais, a estagnação ou o desinteresse dos primeiros tempos só puderam ser efetivamente superados com o deslocamento do enfoque na ‘perseguição eclesiástica’ para o enfoque no discurso, no cotidiano, nas práticas culturais, bem como nos novos agentes históricos (os que entretecem uma história vista de baixo) – enfim, toda uma série de novas perspectivas que motivava a fazer com que o olhar historiográfico fosse deslocado da perseguição para o depoimento dos acusados. Nesta virada para um novo enfoque se insere o seu próprio trabalho.

Um balanço como o realizado acima – que de resto recomendamos como procedimento útil para o trabalho com qualquer tipo de fonte historiográfica, e não apenas para as dialógicas – permite que um historiador adentre o seu tema em maior nível de consciência historiográfica. Por vezes uma leitura como esta sobre a produção historiográfica anterior voltada para o tema, ou em torno das fontes escolhidas, permite que se tenha uma maior clareza sobre o que se ganha e o que se perde com a adoção de uma ou outra perspectiva. Colocar-se diante (e dentro) da história de uma produção historiográfica ajuda a escolher o caminho adequado, com plenos benefícios para a pesquisa. Por isto indicamos este procedimento como um item alternativo, mas a nosso ver importante.

O segundo item recomendado em nosso roteiro, no topo do hemisfério superior do esquema proposto, e que na verdade é o ponto de partida dos itens obrigatórios, corresponde à ‘descrição das fontes’. Sua forma textual, seu suporte material, o idioma, o tipo de vocabulário, o padrão de conteúdo, trata-se aqui de se aproximar de uma compreensão o mais abrangente e complexa quanto possível das próprias fontes, o que de resto prosseguirá nos itens seguintes. Se tratamos com processos inquisitoriais do século XVI, teremos que nos familiarizar com a estrutura do processo inquisitorial, compreender seu dialogismo, sua dinâmica interna, os tipos obrigatórios que o articulam (acusadores, investigadores, réus, testemunhas), e ainda as práticas que o estabelecem (investigação, inquérito, eventualmente a tortura). Se utilizamos como fontes historiográficas os relatos de viagem, será preciso compreender o que são os ‘relatos de viagem’ como gênero literário realista, e também compreender especificamente estes relatos de viagem específicos que tomamos para nossas fontes. Quem é o emissor desta fonte, e de outros tipos de fontes? Genericamente, quem é o ‘viajante’, e especificamente quem é este viajante? A que público se destina um relato como este? A que práticas culturais este gênero de texto atende? Se é um processo – embora isto seja óbvio – que finalidade ele cumpre?
Questões como as envolvidas na ‘descrição das fontes’, remetem ao que já discutimos sobre a necessidade ou possibilidade de alguns textos serem examinados como “processos comunicativos”, o que envolve as figuras do emissor e do receptor, a existência de uma mensagem, os objetivos desta (comover, divertir, manipular, seduzir, persuadir, impor, esclarecer, mover, paralisar). Em se tratando de processos criminais ou inquisitoriais, documentação complexa que se articula em diversos tipos de texto e em diversos níveis, não se trata de compreender as instâncias de um processo comunicativo, mas sim compreender o papel de cada um dos seus agentes discursivos, e de perceber não propriamente uma mensagem, mas uma finalidade do processo como um todo pra depois, talvez por dentro, retornarmos as mensagens através dos depoimentos que instauram discursos específicos.

O terceiro item recomendado em nosso roteiro, logo em seguida a este, refere-se ao ‘contexto das fontes’. Para o caso das fontes de Richard Price sobre os saramakas, seria o caso de dar a si mesmo as adequadas possibilidades de entender as ‘condições de produção’ daquelas correspondências pessoais dos missionários morávios que foram tomadas pelo historiador americano como documentação central em seu trabalho. Se possível, é interessante levantar não apenas o contexto mais imediato das fontes, mas também a sua história como fonte: o contexto que as precede (uma prática dos missionários morávios de registrar relatos e se comunicar com suas bases através de correspondências deste tipo) e também a história posterior: como estas fontes chegaram até nós, que caminhos percorreram até encontrarem seu pouso mais estável em algum arquivo? Para o caso dos “Informantes do Sahagún”, seria o caso de nos aproximarmos da história de uma prática jesuítica, de verificar casos que precederam a experiência do jesuíta Sahagún junto aos astecas submetidos pelos conquistadores espanhóis. Se isto for possível, claro. Depois, verificar como estas fontes chegam até nós, historiadores atuais.

Há ainda o ‘contexto’ não da produção da fonte, mas dos fatos ou processos a que ela remete ou se refere. Se trata-se de um processo, teremos de esclarecer os aspectos que envolvem o crime ou a acusação de heresia: especificamente este crime ou esta acusação de heresia com a qual estamos lidando. Quem são os personagens envolvidos na trama? Que posição ocupam, uns em relação aos outros? Que relações de solidariedade e rivalidade emergem destas relações? Algumas destas perguntas serão preenchidas aos poucos, no decorrer da investigação historiográfica e da análise das fontes, mas apenas as situamos aqui como possibilidades para a constituição do contexto. Mais ainda, e mais importante, qual será o grande contexto? O que embasa esta sociedade e o que define os seus grandes horizontes, dos quais nenhum dos atores envolvidos pode escapar, por serem estes os horizontes intransponíveis de sua sociedade e de sua época? Começamos a lançar aqui as bases para entretecer uma história. Se há vários personagens envolvidos, talvez seja mesmo útil construir o contexto de cada um deles, se não aqui, ao menos no momento da investigação em que isto de fizer necessário.

De igual maneira, quando o que investigamos são as práticas ou as repercussões de uma prática, é preciso delinear também o contexto desta prática específica, e não apenas o dos atores sociais que estão com ela envolvidos, ou o contexto dos acontecimentos que tomaram forma através destas relações. A própria prática herdada de outras culturas, quando deslocada para uma nova sociedade, torna-se uma outra coisa, e precisa ser recontextualizada. Pensemos nas heranças medievais e modernas de práticas pagãs, nas sobrevivências das práticas mágicas e da alquimia no século XVIII. Ser um alquimista na era de Newton (e o próprio Newton tinha o seu lado alquimista), é algo bem distinto de ser um alquimista nos tempos medievais de Nicolas Flamel (1330-1418). Uma prática deslocada precisa ser recontextualizada, reinserida em seu “contexto total”.

A construção do “Contexto”, e eventualmente o que poderá ser entendido como uma “Recontextualização”, constitui uma etapa extremamente importante para qualquer tipo de fontes (e não apenas para as dialógicas). Em um artigo que será comentado mais adiante, Edward Palmer Thompson (1924-1993) chama enfaticamente atenção para a necessidade de reinserir as evidências, os discursos, as práticas ou os processos examinados em seu “contexto total”. Seu mote para a discussão desta questão, do qual mais adiante nos aproximaremos em maior nível de profundidade, é a crítica da sempre incorreta análise descontextualizada dos folcloristas que examinam rituais e práticas culturais como meras permanências de tradições anteriores, e a necessidade que deve ser perseguida pelos historiadores culturais de compreender estes mesmos rituais e práticas à luz das novas funções e usos correntes que estas práticas assumem em outras sociedades (THOMPSON, 2001, p.231). Um antigo ritual pagão deslocado para uma sociedade cristã industrial e para um ambiente urbano é já uma outra coisa, que não mais o que era nos seus tempos romanos. Com relação a esta preocupação historiográfica fundamental a que chamaremos de “recontextualização”, mais do que de uma “contextualização” – pois neste caso específico tratam-se de práticas que foram produzidas em uma configuração social mas deslocadas para outra – poderemos tomar emprestadas as irretocáveis palavras de Edward Thompson:


“O significado de um ritual só pode ser interpretado quando as fontes (algumas delas coletadas por folcloristas) deixam de ser olhadas como fragmento folclórico,uma ‘sobrevivência’, e são reinseridas no seu contexto total” (THOMPSON, 2001, p.238)

Retomado o nosso esquema de crítica documental, os próximos procedimentos referem-se já especificamente às fontes dialógicas. Enquanto os quatro procedimentos até aqui propostos referem-se a todos os tipos de fontes (e não apenas às narrativas, como também às seriais e informativas) – isto no sentido de que para toda fonte será útil recuperar a rede historiográfica que já a abordou, empreender a sua descrição tão complexa quanto possível, e adentrar os contextos tanto da própria produção da fonte como do processo a que ela se refere – já os procedimentos seguintes são especificamente voltados para o trabalho sobre as fontes dialógicas.

O quinto empreendimento que indicamos, refere-se à identificação e descrição da ‘polifonia interna das fontes’. Trata-se de identificar as várias vozes que compõem esta trama polifônica, situá-las em seus níveis arqueológicos (para utilizar a metáfora de Michel Foucault). Trata-se de compreender cada uma delas em um nível que se aproxima ou se afasta mais do historiador, perceber as mediações que lhes são interpostas. Trata-se ainda de entrever os seus diálogos, perceber como se situam umas em relação às outras não apenas nos termos da espacialidade arqueológica do discurso (os níveis de mediação), mas também como as diversas vozes interagem na polifonia textual. Lembraremos aqui o que é uma “polifonia” na teoria musical, campo do qual tomamos emprestada esta metáfora. A Polifonia é a modalidade de música, o método de apresentação musical, no qual diversas vozes soam juntas, sem que uma tenha precedência sobre as demais. Exemplos conhecidos são as fugas ou os corais de Johan Sebastian Bach e outros compositores barrocos e renascentistas, em cuja música há baixos, tenores, sopranos e contraltos, ou ainda nas composições em que diversificados instrumentos entoam melodias distintas. Uma fonte histórica ‘polifônica’ será aquela na qual se expressam efetivamente diversas vozes – por vezes explicitamente, através de um espaço que lhes é concedido para a fala; por vezes implicitamente, através do discurso de um outro que mesmo sem querer termina por permitir que outras vozes falem no interior de seu discurso. Trata-se de uma situação análoga à da jovem adolescente que vai ao psicanalista e na sua fala deixa escapar, diretamente ou através de atos falhos, a voz do pai, do irmão, da mãe, do namorado que a traiu, do professor por quem nutre paixões secretas.

Perceber polifonias no discurso requer sensibilidade, mais ainda do historiador, já que ele lida com planos polifônicos envolvendo várias épocas. Entre as várias vozes com as quais irá lidar está a sua mesma. É preciso não deixar que esta sufoque as vozes históricas sobre as quais tem a responsabilidade de trazer à vida, de recuperar a dimensão exata da sua música. É preciso evitar que a sua voz, com sua especificidade e seus limites, contamine as demais. Isso seria o “anacronismo” – o pecado máximo do historiador, segundo Lucien Febvre –, que corresponde a deixar inadvertidamente que a melodia específica da temporalidade presente tome o lugar das demais com seus ritmos e soluções melódicas específicas. Temos aqui a historiadora feminista que enxerga em Safo reivindicações que são apenas suas, ou o historiador revolucionário que quer enxergar em John Ball, ou ainda o historiador protestante que convoca para a sua causa reformista todos os hereges queimados pela Inquisição. Mas a voz do historiador existe; é preciso lidar com ela, deixar que também se expresse, para que não se caia na ilusão positivista que deslocava a melodia do historiador para a austera posição de um maestro protegido pela neutralidade científica.

Recomenda-se refletir, para as fontes dialógicas, sobre as várias vozes que adquirem vida através da investigação. Depois, agrupá-las segundo as afinidades, consoante critérios que só poderão ser definidos pelo problema histórico que está orientando a pesquisa e a reflexão historiográfica. Poderemos agrupar as vozes por classes sociais, mas também por relações de solidariedade, rivalidade ou preconceito em relação ao acusado que se senta no banco dos réus. Poderemos partilhá-los por gerações ou por gêneros, se o problema da pesquisa apontar para uma coisa ou outra. Poderemos criar critérios que combinem o gênero e as categorias profissionais, de modo a distinguir as mulheres operárias das que trabalham no comércio a varejo. Poderemos até mesmo criar um recurso para clarear o timbre de cada uma das vozes envolvidas, como fez Richard Price ao escolher um padrão tipográfico para cada um dos atores sociais que é posto a falar em seu livro Alibi’s Word (1990).

Uma tarefa mais difícil do historiador dialógico é a busca de dialogismos implícitos (item 6). Pela sua própria estrutura, um texto pode registrar explicitamente a voz do outro, como é o caso dos processos criminais e inquisitoriais. O padrão de pergunta e resposta não deixa dúvidas com relação à estrutura dialógica de uma situação, embora também tenhamos os clássicos exemplos dos Diálogos de Platão, mais monólogos disfarçados em estrutura dialógica do que qualquer outra coisa. Exceção feita ao Banquete – obra dialógica por excelência – a maior parte dos diálogos platônicos apenas forja uma estrutura de oposição interativa. Isto também podia ocorrer, é preciso ressalvar, mesmo no dialogismo inquisitorial, nas ocasiões em que “as respostas dos réus não eram mais do que o eco das perguntas dos inquisidores ‘ (GINZBURG, 1994, p.208). Tanto a percepção do “monódico” que se esconde sob a aparência polifônica (ou do monólogo que se esconde na estrutura de diálogo), como a percepção do ‘dialogismo implícito’ (item 7), eis aqui algo que requer um nível maior de sensibilidade do historiador. Com relação a este último aspecto, Ginzburg cita (dialogicamente) um texto de Roman Jakobson (1896-1982), o grande lingüista russo que foi pioneiro da análise estrutural da linguagem. Jakobson antecipa Bakhtin na sua percepção radical do dialogismo humano, e nos diz que “o discurso interior é na sua essência um diálogo, e todo discurso indireto é uma apropriação e uma remodelação por parte daquele que cita, quer se trate da citação de um alter ou de uma fase anterior do ego” (JAKOBSON, 1964, p.273). O dialogismo, enfim, pode se esconder mesmo no interior do discurso do “Eu”.

Ao sexto item de nosso quadro dialógico chamaremos de ‘crítica de veracidade dos mediadores’. Para entender este item, retornaremos agora ao texto “O Inquisidor como Antropólogo”, de Carlo Ginzburg (1989), no sentido de avançar na compreensão de certos aspectos relativos às fontes dialógicas e extrair mais sugestões de procedimentos a serem incorporadas ao nosso roteiro.
Quando lidamos com fontes dialógicas, e particularmente com fontes processuais, devemos tentar entender em um primeiro momento o nosso “filtro”, os mediadores que se interpõem entre nós e os acusados, testemunhas, e outros agentes emissores dos discursos que nos interessam em última instância (isto, é claro, quando não estamos diretamente interessados no discurso destes mediadores: compreender o discurso emitido pelo próprio juiz, inquisidor ou delegado que conduz a investigação criminal).

Admitindo que nosso objetivo é atingir a outra camada arqueológica – a dos acusados da Inquisição, a dos astecas resgatados pelo padre Sahagún, a dos saramakas catequizados pelos missionários morávios, a dos chineses relatados por Marco Pólo, a dos nativos retratados por Debret – teremos que passar obrigatoriamente pela camada mais próxima. Estes mediadores é que nos entregam os discursos dos outros, dos vários atores cujas falas constituirão a base de nosso trabalho. É preciso indagar, antes de mais nada, pelo seu interesse – destes mediadores – em relatar com veracidade o que viram, em registrar com maior ou menor rigor os depoimentos que recolheram, em dar voz aos seus protegidos, aos seus reprimidos, aos seus vencidos. Mais do que isto, será preciso indagar não apenas se eles possuem interesse em agir no plano da veracidade, mas também se eles são capazes de agir neste plano, se estão dotados para tal da necessária “utensilhagem mental”, para retomar aqui a antiga expressão de Lucien Febvre.

Vimos no exemplo de Richard Price, ao menos se levarmos em consideração as críticas que Eric Hobsbawm dirige ao seu trabalho, que os missionários morávios não estavam em grandes condições de compreender o estranho mundo dos saramakas. Compreender a capacidade do ‘mediador’ em se aproximar compreensivamente ou não de uma cultura ou prática cultural que lhe é estranha, ou ao menos lançar uma indagação sobre os níveis possíveis ou os limites desta compreensão, é fundamental para não naufragarmos em nossa viagem de exploração. Como vimos nos comentários de Hobsbawm sobre o ensaio de Price, trata-se de uma dupla compreensão: é preciso que nós compreendamos os nossos mediadores, e que em seguida compreendamos a compreensão que lhes foi possível sobre os seus inquiridos, os seus nativos protegidos, os seus saramakas, os seus “outros” de vários tipos. Sobre seus próprios mediadores – os inquisidores do século XVI – Ginzburg tem algo a dizer:


“Foi a ânsia de verdade por parte do inquisidor (a sua verdade, claro) que permitiu que chegasse até nós essa documentação, extraordinariamente rica, embora profundamente deturpada pela pressão psicológica e física a que os acusados estavam sujeitos. Há, nas perguntas dos juízes, alusões mais que evidentes ao sabat das bruxas – que era, segundo os demonologistas, o verdadeiro cerne da feitiçaria: quando assim acontecia, os réus repetiam mais ou menos espontaneamente os estereótipos inquisitoriais então divulgados na Europa pela boca dos pregadores, teólogos, juristas, etc” (GINZBURG, 1994, p.206).


Ginzburg expõe alguns problemas nesta interessante passagem. Fala-nos por exemplo da “contaminação”. Ainda que reconheça a ‘veracidade’ (ou a intenção de veracidade) dos seus mediadores – aspectos que já comentaremos – observa um limite a ser considerado pelo analista historiador. As perguntas por vezes, já comportam respostas, ou se abrem a certos padrões de respostas e não a outros. Um certo vocabulário que se utiliza na pergunta, já pode contaminar de alguma maneira a resposta; um certo imaginário pode passar daquele que indaga àquele que responde. Este aspecto é um limite, mas também é uma riqueza. O próprio inquisidor que indaga, talvez ele mesmo já tenha sido contaminado pelos demonologistas, teólogos e pregadores de sua época. Mesmo que não fosse, ainda assim o próprio réu pode já ter sentado no banco da inquisição com conhecimento de certas imagens que fazem parte do outro campo cultural. Quando se estabelece o espaço da não-comunicação, quando ele se vê incapaz de transmitir uma imagem ou sensibilidade que é só sua, e que não existe no sistema cultural ou vocabular dos seus inquisidores, tentará romper o espaço de não-comunicação – que de todo modo é extremamente perigoso para quem está sob a ameaça de tortura – e talvez tente encontrar junto aos seus inquiridores uma linguagem ou repertório de sensibilidades em comum, algo que percebeu no seu horizonte de expectativas ou, de modo diverso, algo que escutou no mundo externo, e que supõe ser compreensível ao inquisidor. No caso do réu, por vezes ele quer escapar dali, nem que seja para a fogueira. Seu desejo é restabelecer um espaço de comunicação. O silêncio é perigoso, e pode ser mesmo doloroso.

Não é apenas sob pressão que a contaminação ocorre. Quantas concessões culturais tiveram de ser feitas pelos astecas a quem o padre jesuíta Sahagún pretendeu dar alguma voz, quando percebiam que seu protetor não conseguia penetrar no seu mundo? As palavras também são mediadores, como as imagens. Quantas aproximações deverão ter experimentado para estabelecer uma ligação entre dois mundos tão distintos como o dos europeus e o dos astecas no século XVI. Alguns destes tateamentos para preencher um espaço de não-comunicação, com vistas a restabelecer a comunicação solidária entre o jesuíta e os nativos oprimidos, devem certamente ter ficado registrados nos depoimentos que hoje constituem a chamada documentação do “Informantes de Sahagún”. Quantas manobras discursivas, torcendo e retorcendo padrões de sensibilidade, não terão sido feitas pelos quilombolas saramakas aos missionários morávios que tentavam catequizá-los, mas que se mostravam tão ineptos para a função de mediação que neles deveria ser perseguida como a principal virtude, se queriam mesmo trazer os saramakas para o seu mundo religioso. Como confiar diretamente no missionário morávio, tomando por base a correspondência que trocava com outro indivíduo de sua mesma espécie?

Para o seu universo dialógico, Ginzburg reconhece a ‘ânsia de verdade’ dos seus inquisidores. Existe outra passagem em seu artigo que é uma das mais brilhantes formas de descrever um dialogismo que também atinge o próprio historiador.
“O que os juízes da inquisição tentavam extorquir às suas vítimas não é, afinal, tão diferente daquilo que nós mesmos procuramos – diferentes sim eram os meios que usavam e os fins que tinham em vista. Quando eu estava a ler processos dos tribunais da Inquisição, muitas vezes dava por mim a espreitar por cima do ombro do inquisidor, seguindo os seus passos, na esperança que também ele teria, de que o réu confessasse as suas crenças – por sua conta e risco, claro. Esta contigüidade com a posição dos inquisidores não deixa de entrar em contradição com a minha identificação com os réus. Mas não gostaria de insistir neste ponto” (GINZBURG, 1994, p.206)

Claro. Ginzburg também está dialogando com o politicamente correto de nosso ponto. Não fica bem espreitar por cima dos ombros do inquisidor para escutar a sofrida voz do réu, embora seja exatamente isto que o historiador acaba tendo de fazer. Mas, de todo modo, ao confessar a identificação com a ânsia de verdade do inquisidor, com o seu desejo de dar voz ao outro mesmo que para finalidades que o historiador reprovaria, é preciso também contrabalançar com a declaração de identificação com o réu. Não é possível aprovar nem os meios inquisitoriais nem os fins que se tinha em vista. Com esta frase, Carlo Ginzburg dialoga com os leitores de seus livros. Também é dialógica esta relação entre um autor e seus leitores. Mas, enfim, também não há muito que insistir sobre este ponto.

Deve-se atentar ainda, e registraremos como um sétimo item a ser considerado para a abordagem das fontes dialógicas, a identificação e análise dos ‘instrumentos e procedimentos de mediação’. A “tortura” em contexto como o da Inquisição ou das Ditaduras Militares, é um procedimento óbvio para os modelos de interrogatório violentos, e está relacionado à “assimetria entre as vozes”, da qual falaremos no próximo item. Mas há também inúmeros outros instrumentos de mediação ou intervenção que podem alterar o conteúdo ou o registro das vozes. Na documentação policial, como por exemplo nas “ocorrências”, deve-se considerar a intervenção do escrivão que anota os depoimentos, mas que nesta operação já os altera eventualmente; e mesmo um certo padrão prévio de maneiras de redigir pode estar entre os elementos capazes de distorcer as vozes, menos ou mais levemente.

Uma recomendação final é recuperar a rede de poderes, e eventualmente de micro-poderes, que se integra ao dialogismo das fontes (item 8). Tal como nos mostra Carlo Ginzburg (1994, p.208), o Inquisidor e seu Réu – embora se situem no plano do discurso como duas vozes de igual ressonância para o historiador – estão em situação de desigualdade, o mesmo ocorrendo com o antropólogo e os seus nativos ou outros informadores.Aqui aparecem situações que envolvem poderes reais e poderes simbólicos, mas que em todo o caso expõem uma assimetria entre as vozes examinadas. Há também uma assimetria entre os quilombolas saramakas e os missionários morávios estudados por Richard Price, embora seja difícil dizer quem está em posição mais confortável perante o outro. São assimetrias em que um poder não se impõe sobre a voz oprimida, tal como é o caso óbvio da Inquisição ou do poder simbólico que exerce o jesuíta Sahagún sobre os astecas já sobreviventes de uma sociedade destroçada pelos espanhóis. Entre os saramakas e os missionários morávios temos poderes e micro-poderes que se confrontam. O primeiro grupo se esquiva do segundo; este, por sua vez, acredita ter exercido algum poder simbólico, quando na verdade apenas foi empurrado para o mundo da não-comunicação. Não há poder mais sutil que o de enganar o antropólogo ou o missionário.


.
Leia o artigo completo no qual este texto encontra-se inserido: http://ning.it/hhjbtC
.

BARROS, José D'Assunção. “Fontes Históricas – um caminho percorrido e perspectivas sobre os novos tempos” in Revista Albuquerque. Vol.3, n°1, 2010. http://ning.it/hhjbtC


____________________________________

Referências:

BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martisn Fontes, 1992.
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, Lar e Botequim, São Paulo: Brasiliense, 1986 [original: 1984].
CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
GINZBURG, Carlo. “Raízes de um Paradigma Indiciário” In Mitos, Emblemas e Sinais. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 143-179 [original: 1986].
GINZBURG, Carlo. “Provas e Possibilidades” In A Micro-História e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1991. 179-202.
GINZBURG, Carlo. “O Inquisidor como Antropólogo” In A Micro-História e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1994 [original: The Inquisitor as Anthropologist: an Analogy and its implications” in Class, Myths and the Historical Method. Baltimore: John Hopkins University Press, 1989].
MARTINS, José de Souza Subúrbio. São Paulo: HUCITEC, 1992.
PRICE, Richard. Alabi’s World. Baltimore: John Hopkins University Press, 1990.
REIS, José Carlos. “Os Annales: a Renovação Teórico-Metodológica e ‘Utópica’ da História pela Reconstrução do Tempo Histórico” In SAVIANI, Dermeval, LOMBARDI, José Claudinei e SANFELICE, José Luís (orgs.). História e História da Educação – o Debate Teórico-Metodológico Atual. Campinas: Editora Autores Associados, 1998.
SOUZA, Laura de Melo. O Diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
THOMPSON, Edward P. “Folclore, Antropologia e História Social” In As peculiaridades dos ingleses e outros artigos, São Paulo: UNICAMP, 2001. p.254-255].

Fonte Histórica (5). Abordagem Serial e recortes na Fonte

Dizíamos em momento anterior que os historiadores lidam habitualmente com um recorte tridimensional de seu tema: Tempo, espaço e Problema. Vamos considerar, neste momento, um utro tipo de recorte possível para os historiadores de hoje: o ‘recorte serial’.

Neste caso, recorta-se o objeto não propriamente em função de uma determinada realidade histórico-social concernente a uma delimitação espaço-temporal preestabelecida, mas mais precisamente em função de uma determinada série de fontes ou de materiais que é constituída precisamente pelo historiador. Este tipo de caminho historiográfico começou a emergir a partir de meados do século XX, tendo como marco a já mencionada obra de Pierre Chaunu sobre 'Sevilha e o Atlântico' (1954).

Na chamada ‘História Serial’ o historiador estabelece uma “série”, e é esta série que particularmente o interessa. François Furet, em seu 'Atelier do Historiador' (1982), define a História Serial em termos da constituição do fato histórico em séries homogêneas e comparáveis. Dito de outra forma, trata-se de “serializar” o fato histórico, para medi-lo em sua repetição e variação através de um período que muitas vezes é o da longa duração. Na verdade a duração longa, ou pelo menos a média duração (relativa às conjunturas), foram as que predominaram nos primeiros trabalhos de História Serial – muito voltados, nesta primeira época, para a História Econômica e para a História Demográfica, ao mesmo tempo que combinados com a perspectiva de uma História Quantitativa. Todavia, pode-se proceder a uma serialização relacionada também a um período relativamente curto, desde que o conjunto documental estabelecido seja suficientemente denso.

De certo modo, as possibilidades de tratamento serial permitiram uma sensível ampliação de alternativas em termos de recorte historiográfico, uma vez que as séries singulares a serem construídas por cada historiador já não se enquadrariam nas periodizações tradicionalmente preestabelecidas. Criar uma série é, em certa medida, recriar o tempo – assumi-lo como ‘tempo construído’, e não como ‘tempo vivido’ a ser reconstituído.

Por outro lado, optar pelo caminho serial pressupõe necessariamente escolher ou construir um problema condutor muito específico – problema este que é fator fundamental na constituição da própria série. A História Serial veio assim diretamente ao encontro de uma História Problema, como as demais modalidades historiográficas que passaram a predominar na historiografia profissional do século XX.

Com relação a este aspecto, e em se tratando de uma série documental homogênea, não teria sentido examinar esta série evasivamente, de modo meramente impressionista. A História Serial constitui-se necessariamente de uma leitura da realidade social através da série que foi construída pelo historiador em função de um certo problema*. Não se trata, assim, de optar inicialmente pelo estudo de uma determinada sociedade para só depois buscar as fontes que permitirão este estudo ou o acesso a esta sociedade, como poderia se dar em outros caminhos historiográficos. O que o historiador serial estuda é precisamente a série: este é basicamente o seu recorte e a essência de seu objeto. E pode-se compreender como uma “série” tanto os fatos repetitivos que permitem ser avaliados comparativamente, como uma determinada documentação homogênea.

No primeiro sentido, François Furet fala em termos de uma serialização de fatos históricos que trazem entre si um padrão de repetitividade (fatos históricos que serão obviamente de um novo tipo, não mais se reduzindo aos acontecimentos políticos). No segundo sentido, ao examinar os novos paradigmas historiográficos surgidos no século XX, Michel Foucault assinala que “a história serial define seu objeto a partir de um conjunto de documentos dos quais ela dispõe” . Isto abre naturalmente um grande leque de novas possibilidades:


“Assim, talvez pela primeira vez, há a possibilidade de analisar como objeto um conjunto de materiais que foram depositados no decorrer dos tempos sob a forma de signos, de traços, de instituições, de práticas, de obras, etc ...” (FURET, 1982]


Portanto, em que pese que fontes administrativas, estatísticas, testamentárias, policiais e cartoriais se prestem admiravelmente a um trabalho de História Serial, é possível também constituir em série documentação literária, iconográfica, ou mesmo práticas perceptíveis a partir de fontes orais. É mesmo possível constituir séries às quais não se pretenda necessariamente aplicar um tratamento quantitativo propriamente dito, mas sim uma abordagem mais tendente ao qualitativo – interessada ainda em perceber tendências, repetições, variações, padrões recorrentes e em discutir o documento integrado em uma série mais ampla, mas sem tomar como abordagem principal a referência numérica.

Uma das obras de Gilberto Freyre, por exemplo, constitui como série documental para o estudo da Escravidão no Nordeste os anúncios presentes em jornais da época – onde os grandes senhores anunciavam a fuga de escravos fornecendo descrições detalhadas dos mesmos, inclusive sinais corporais que falavam eloqüentemente das práticas inerentes à dominação escravocrata . Não é propriamente o Escravo que é o seu objeto, mas “o Escravo nos anúncios de jornal”, como o próprio título indica. Ou seja, busca-se recuperar um discurso sobre o Escravo a partir de uma série que coincide com os periódicos examinados pelo autor; procura-se dentro desta série perceber uma recorrência de padrões de representação, mas também as singularidades e variações, e por trás destes padrões de representação os padrões de relações sociais que os geraram.

Quantitativos ou qualitativos, os caminhos historiográficos marcados pela ultrapassagem do documento isolado passaram a se integrar definitivamente ao repertório de possibilidades disponíveis para o historiador. Interessa-nos dar a perceber aqui que o recorte documental mostra-se como uma outra possibilidade para o historiador delimitar o seu tema. Definido este recorte, surgirá então uma delimitação temporal específica, que será válida para aquele recorte problemático e documental na sua singularidade, e não para outros. Dito de outra forma, em alguns destes casos é uma documentação que impõe um recorte de tempo, a partir dos seus próprios limites e das aberturas metodológicas que ela oferece.

Será bastante buscar uma exemplificação final com o próprio estudo pioneiro de Pierre Chaunu. O recorte de sua tese, estabelecido entre 1504 e 1650, é criado a partir de uma primeira data em que a documentação da ‘Casa de Contratação de Sevilha’ lhe permite uma construção estatística, e extingue-se no marco de uma segunda data quando a documentação já não permite uma avaliação quantitativa dos fatos (precisamente uma data relativa ao momento em que o comércio atlântico deixa de trazer a marca do predomínio espanhol e em que, consequentemente, a documentação de Sevilha se dilui como definidora de uma totalidade atlântica). O recorte documental problematizado, enfim, organizou o tempo do historiador.

O recorte serial é em boa parte dos casos um ‘recorte na fonte’. Mas existem, para além disto, outras possibilidades de recortar o tema de acordo com a fonte. Pode ser que o historiador pretenda examinar uma obra singularizada – ou para identificar o pensamento de um autor, ou para analisar a sua inserção nos limites da época – como se faz muito habitualmente nos campos da História das Idéias e da História Social das Idéias. Pode ser que o interesse seja examinar uma determinada produção cultural, e que uma crônica, um cancioneiro ou uma seqüência iconográfica surjam como objetos de interesse de uma História Cultural ou de uma História Social da Cultura. Um mito ou um conjunto de mitos pode se constituir simultaneamente nas fontes e objetos de um trabalho de Antropologia Histórica. As possibilidades de empreender ‘recortes na fonte’, conforme se vê, são inúmeras.
.

[O presente texto foi extraído do livro "O Projeto de Pesquisa em História"]

[BARROS, José D'Assunção. O Projeto de Pesquisa em História. Petrópolis: Editora Vozes, 2011, 7a edição. p.47-51]


_____________________________

Referências:

BARROS, José D'Assunção. O Projeto de Pesquisa em História. Petrópolis: Editora Vozes, 2011, 7a edição.
CHAUNU, Pierre e CHAUNU, Huguette. Séville et l’Atlantique. Paris: S.E.V.P.E.N., 1955-1956.
FREYRE, Gilberto. O Escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX. São Paulo: Brasiliana, 1988.
FURET, François. A Oficina da História. Lisboa: Gradiva, 1991. v. I.

Fonte Histórica (4). Aspectos a serem observados em uma Fonte

Tentemos uma síntese. Tomaremos como ponto de partida o texto autoral, isto é, o texto que apresenta um autor definido (mesmo que anônimo), ao contrário do documento que é produzido institucionalmente como massa de dados (uma lista censitária, ou os documentos do fisco), ou que se produz involuntariamente, tal como os objetos que se perdem e depois são reencontrados na pesquisas arqueológicas.

Quando o historiador está diante de um texto que foi produzido por alguém, a primeira pergunta que costuma vir à sua cabeça é a que busca o autor. Quem escreveu este texto? O que pensava? Que intenções tinha no momento em que o escreveu? Fez de livre ou espontânea vontade, ou sob pressão? A quem visava?

Organizemos isso. Quando perguntamos "quem é o autor", podemos pensar em um indivíduo específico. Contudo, cedo aprendem os historiadores em formação que os indivíduos não se encontram soltos no tempo, desgarrados de uma sociedade, independentes dela. Se podemos nos perguntar pela (1) 'Autoria', logo também deveremos nos perguntar pelo (2) 'Contexto' que constrange ou libere esta autoria.

O Contexto corresponde a uma época, e também a uma sociedade que envolve um autor. Dificilmente um homem pode escapar aos limites impostos pelo seu tempo, e aos horizontes de percepção que lhe são franqueados a partir de sua época e da sociedade em que vive. Muitos dirão que, em hipótese alguma, um autor não pode escapar ao seu tempo. De um modo ou de outro, é nas águas de um Contexto que um Autor emerge: nelas ele se apoia, e contra elas ele se debate.

A pergunta pelo contexto autoral é uma pergunta que busca prescrutar também a sociedade no qual o indivíduo autoral está inserido. Perguntamo-nos, quando tentamos relacionar um Autor a uma Sociedade, pela 'posição social' que ocupa, pela 'profissão' que exerce, pelas 'instituições' que o enquadram.

Devemos também entender que um Autor, como todo indivíduo, possui uma história. Um texto foi escrito em determinado momento desta história. Podemos nos perguntar, portanto, pelas 'circunstâncias autorais'. Maquiavel, que foi eminência parda da política florentina em determinados momentos de sua história, escreveu sua obra mais conhecida - "O Príncipe" - alijado do poder. Essas circunstâncias autorais não podem deixar de interferir em sua obra. Adolf Hitler escreveu o primeiro volume do livro "Mein Kampf" na prisão, para a qual foi enviado após o fracassado "Putsch da Cervejaria" (1923). Além das circunstâncias da prisão, escreve-o no contexto que o alçou à liderança dos nazistas. Como estas circunstâncias - aquelas em que Maquiavel escreveu "O Príncipe", ou aquelas em que Hitler escreveu "Mein Kampf" - interferem ou ajudam a formatar cada um destes textos?

Na maior parte dos casos, senão sempre, um texto também é escrito visando um (4) Receptor. Escreve-se para comover alguém, para intimidá-lo, para informá-lo, para motivá-lo, para provocar-lhe reações.A Recepção, já discutimos isto anteriomente, termina por se inscrever também na Produção de um texto, uma vez que um autor também escreve o seu texto pensando naqueles que irão recebê-lo.

Todo texto lida com um (5) Vocabulário. Mesmo que o autor não pense nisso ou não deseje isto, um Vocabulário nos diz muitas coisas acerca deste autor - inclusive as que ele não pretendia dizer. Também diz muitas coisas acerca daqueles que lerão o texto. O texto, conforme já dissemos, é um ato de comunicação. O Vocabulário de um texto fala-nos de seu autor e de seus leitores.

Um texto pertence a algum (6) Gênero Textual. Ele pode ser um poema, uma carta, um edito régio, um ensaio científico, umdiscurso político, afora inúmers outras possibilidades, Há implicações quando estamos diante de um gênero ou de outro. O historiador, ao analisar o texto como fonte histórica, precisa se avizinhar deste aspecto. De igual maneira, todo texto possui uma (7) Forma, que corresponde à maneira como o discurso é organizado no texto. esta forma deve ser, igualmente, objeto de análise do historiador.

Já discutimos que todo texto está em (8) Intertextualidade. Ou seja,ele dialoga com outros textos: explicitamente ou implicitamente, voluntariamente ou involuntariamente. Recuperar a rede intertextual na qual se insere um texto é um passo importante da operação historiográfica de análise textual.

É claro, todo texto possui um (9) Conteúdo, embora seja muitas vezes difícil separar forma e conteúdo. O texto se apresenta como mensagem, como 'objeto de comunicação' que, é quase um truísmo dizer, pretende comunicar algo. O que o texto pretende dizer? O que ele não diz. É preciso analisar também, nesta mesma operação, os seus Silêncios (10).

Nem todo documento é autoral. Mas também podemos substituir algumas categorias. Se um documento do Censo não visa um Receptor, de todo modo, ele visa uma Finalidade. Os registros do Censo foram pruduzidos por algum motivo, ou para atender a determinadas finalidades. O que foi dito para o "texto", também pode ser pensado eventualmente para outros registros, como a 'imagem' ou a 'oralidade', embora cada tipo de suporte também apresente as suas singularidades.

Estes, e outros aspectos, devem ser considerados pelo historiador quando está diante de sua fonte.

Fonte Histórica (3) Dimensões envolvidas na análise qualitativa do texto

[o presente texto foi extraído do livro "O Campo da História"]


No último texto, vimos que, nos dias de hoje, tudo pode ser fonte histórica. Para muito além da documentação escrita, os historiadores contemporâneos aprenderam a lidar com fontes imagéticas, fontes materiais, fontes imateriais, fontes orais, ou mais o que s possa imaginar para além do suporte escrito.

Isso não quer dizer,todavia, que tenha decrescido o uso de fontes escritas pelos historiadores. Se outros suportes que não o escrito passaram a ser considerados pelos historiadores como fontes diretas para os seus estudos, o fato é que ainda hoje o historiador vê se ampliarem cada vez mais as oportunidades para trabalhar com os ‘textos escritos’. Ou seja, se a historiografia do século XX ampliou o seu conceito de fonte histórica para um mundo não-textual de possibilidades, também ampliou extraordinariamente os tipos de documentação escrita com as quais irá lidar. Não mais apenas as fontes institucionais e diplomáticas ou as crônicas oficiais que praticamente ocupavam todas as expectativas do historiadores do século XIX; hoje qualquer texto pode ser constituído pelo historiador como fonte: o diário de uma jovem desconhecida, uma obra da alta literatura ou da literatura de cordel, as atas de reunião de um clube, as notícias de jornal, as propagandas de uma revista, as letras de música, ou até mesmo uma simples receita de bolo. Não há mais limites para os tipos de textos que podem servir como materiais para o historiador.

Houve uma mudança na postura do historiador para com estes textos. Se antes os textos eram quase que exclusivamente utilizados como ‘testemunhos’ dos quais os historiadores do século XIX procuravam extrair informações mais ou menos diretas (na maior parte dos casos de uma maneira ingênua que associava o documento histórico à idéia de “prova”), hoje as fontes textuais são também utilizadas como ‘discursos’ a serem decifrados em si mesmos. Relembrar, ainda uma vez, o que vem a ser a ‘fonte histórica’, pode ajudar a iluminar melhor esta distinção entre “testemunho” e “discurso”.

A fonte histórica, já o dissemos, é aquilo que coloca o historiador diretamente em contato com o seu problema. Ela é precisamente o material através do qual o historiador examina ou analisa uma sociedade humana no tempo, ou um processo histórico na dinâmica do seu devir. Uma fonte pode preencher uma das duas funções acima explicitadas: ou ela é o meio de acesso àqueles fatos históricos que o historiador deverá reconstruir e interpretar (fonte histórica = fonte de informações sobre o passado), ou ela mesma ... é o próprio fato histórico. Vale dizer, neste último caso considera-se que o texto que se está tomando naquele momento como fonte é já aquilo que deve ser analisado, enquanto discurso de época a ser decifrado, a ser compreendido, a ser questionado. É neste sentido que diremos que a fonte pode ser vista como ‘testemunho’ de uma época e como ‘discurso’ produzido em uma época.

A historiografia, ao superar o positivismo ingênuo do século XIX, foi tendendo a valorizar cada vez mais esta dimensão da fonte histórica textual como ‘discurso’. Hoje, poderíamos dizer que a maior parte das práticas historiográficas insere-se em uma História do Discurso (ou, se quisermos, uma História Textual). Um discurso qualquer pode ser analisado tanto a partir de uma ‘abordagem qualitativa’ como a partir de abordagens 'quantitativas’, 'topológicas', ‘seriais’, considerandoque estas últimas examinam documentos reunidos em série. Falaremos das abordagens ‘serial’ e ‘quantitativa’ em outra oportunidade. Por ora, reflitamos sobre as possibilidades qualitativas de um texto.

Um texto pode ser abordado qualitativamente de muitas maneiras. Os historiadores, os críticos literários, os lingüistas, os psicanalistas, e quaisquer outros profissionais que dependam da interpretação de textos para o seu ofício (como é o caso também dos advogados e dos investigadores de polícia) não cessam de inventar novos modos de trabalhar sobre o texto, avançando para muito além daquilo que se encontra aparentemente exposto em sua superfície. As abordagens semióticas, por exemplo, hoje utilizadas por vários historiadores, enriqueceram muito as possibilidades de fazer um texto falar sobre coisas que o próprio autor do texto não pretendia dizer. Quando alguém utiliza determinadas expressões e palavras, já está dizendo algo ao bom analista de textos, independente dos sentidos que ele pretenda atribuir às palavras. A presença de certas imagens em um discurso, a recorrência de determinadas palavras, a maneira de organizar uma narrativa, as referências intertextuais (a outros textos) - sejam estas voluntárias, explícitas, implícitas ou involuntárias - tudo isto fala por si mesmo independente do ser falante que pronuncia o discurso.

Isto, sem levar em consideração a possibilidade de contrapor textos diferenciados, de pôr as várias versões a respeito de um acontecimento a se iluminarem ou a se contradizerem reciprocamente. Estas contradições, veremos mais adiante, podem ser de grande valia para um historiador. Sem contar que as contradições existem internamente a um mesmo texto, trazendo à tona o caráter polifônico de certos discursos.

A riqueza de qualquer texto está no fato de que ele é simultaneamente um ‘objeto de significação’ e um ‘objeto de comunicação cultural entre sujeitos’. Estes dois aspectos na verdade se complementam: se por um lado o texto pode ser definido pela organização ou estruturação que faz dele uma “totalidade de sentido”, por outro lado ele pode ser definido como um objeto de comunicação que se estabelece entre um destinador e um destinatário (ou entre um destinador e muitos destinatários).

A tentativa de avaliar o texto na sua primeira dimensão, a de ‘objeto de significação’, gera a análise interna ou estrutural do texto (que pode ser empreendida por aportes teóricos e metodológicos diferenciados, sendo a semiótica uma destas possibilidades). Já a avaliação do texto como ‘objeto de comunicação’ implica na análise do contexto histórico-social que o envolve e que, de alguma maneira, atribui-lhe sentido. Neste caso, empreende-se a análise externa do texto, que também pode ser concretizada através de diferenciados aportes teóricos e metodológicos. Ainda com relação à sua análise externa, o texto também pode ser exa-minado do ponto de vista das intenções ou das motivações pessoais do autor que o produziu, ou daqueles que dele se apropriam imputando-lhe novos sentidos. A perspectiva mais útil para a História é considerar mesmo o texto a partir da dualidade que o define enquanto ‘objeto de significação’ e ‘objeto de comunicação’.

De acordo com esta visão complexa e multidimensional do texto, que postularemos ser a mais adequada para o historiador, pode-se dizer que a análise de um discurso deve contemplar simultaneamente três dimensões fundamentais: o intratexto, o intertexto e o contexto. O ‘intratexto’ corresponde aos aspectos internos do texto e implica exclusivamente na avaliação do texto como objeto de significação; o ‘intertexto’ refere-se ao relacionamento de um texto com outros textos; e o contexto corresponde à relação do texto com a realidade que o produziu e que o envolve. São precisamente estas duas últimas dimensões que exigem que o texto, além de ser tratado como um objeto de significação em si mesmo, seja considerado também como objeto de comunicação.

A visão do texto a partir da tríplice abordagem do intratexto, do intertexto e do contexto é inegavelmente a mais rica para um historiador que pretende utilizar o discurso textual como fonte. Por outro lado, autores como Roland Barthes consideram o texto como um sistema auto-suficiente de signos cujo significado provém de suas interrelações, e não de fatores externos como a ‘intenção do autor’ ou o seu ‘contexto de produção’. Assim, para a perspectiva estruturalista de Roland Barthes as palavras, símbolos e imagens em interação criam sistemas de significados que repetem a estrutura da linguagem e refletem as funções sociais da mitologia. O resultado disto é que o texto poderia ser analisado sem um recolocação na sociedade que o produziu ou que o consome. Ou, dito de outra forma, a análise restringe-se neste caso apenas ao plano do intratexto.

Em que pesem as contribuições que o historiador possa extrair deste tipo de semiótica estruturalista que procura examinar o texto em si mesmo, desprezando as referências externas, a verdade é que sempre será muito importante para um historiador “contextualizar” o texto com o qual está trabalhando. Todo texto é produzido em um lugar que é definido não apenas por um autor, pelo seu estilo e pela história de vida deste autor, mas principalmente por uma sociedade que o envolve, pelas dimensões desta sociedade que penetram no autor, e através dele no texto, sem que disto ele se aperceba. Uma época, uma sociedade, um ambiente social (rural, urbano), uma Instituição, uma rede de outros textos às quais o autor deverá se conformar, as regras de uma determinada prática discursiva ou literária, as características do gênero literário em que se inscreve o texto: tudo isto constrange o autor que escreve o texto, deixando nele suas marcas a princípio indeléveis, mas que devem ser pacientemente decifradas pelos historiadores e outros analistas de textos.

Além de um lugar de produção, todo texto tem também um destino. Pode ser, por exemplo, um determinado receptor ou grupo de receptores (os leitores de um jornal ou de uma obra literária, a população que é comunicada acerca das decisões régias através de um edito). O receptor, mesmo que o autor ou produtor do texto não esteja plenamente consciente disto, ajuda também a escrever o texto. Quem escreve um texto acaba sem querer antecipando certas expectativas de quem irá recebê-lo, seja para contemplá-las ou para afrontá-las. Qualquer texto visa um receptor (ou um “lugar de recepção”), porque ele tem uma “intenção” (uma mensagem que quer ser transmitida ou uma informação a ser registrada).

É verdade que, em alguns casos, o texto não é produzido originalmente com vistas propriamente a um receptor, mas sim para contemplar determinada finalidade. Uma canção quer chegar a um público, um Edito quer chegar a um súdito, uma carta quer atingir um interlocutor ... mas os documentos cartoriais e paroquiais, a princípio, pretendem apenas registrar certas informações que serão necessárias oportunamente, ou para as autoridades que controlam uma população, ou para os próprios indivíduos aos quais se referem estes documentos. O historiador pode lidar tanto com textos que visam ‘receptores’, como com textos que buscam cumprir determinadas ‘finalidades’.

Grosso modo, pelo que pudemos ver até aqui, o triângulo da comunicação em que se insere todo texto tem estes três vértices: um lugar de produção, um conteúdo (intenção, mensagem), um lugar de recepção (ou de destino). O historiador deve lidar habilmente com cada um destes vértices e com a sua interação (porque cada um deles se inscreve no outro, no sentido, por exemplo, de que o produtor do texto antecipa certas expectativas do seu receptor).

A isto poderemos acrescentar uma outra dimensão que é a da ‘intertextualidade’, a que já nos referimos anteriormente. Qualquer texto insere-se em uma rede de semiose, em uma rede de textos da qual ele extrai um pouco do seu sentido. Já fizemos notar que o próprio ‘gênero’ no qual se enquadra um texto (edito, crônica, poesia, norma jurídica) já estabelece automaticamente um primeiro nível de intertextualidade (o texto irá dialogar, quer queira o autor ou não, com as normas literárias e com o repertório de possibilidades que regem aquele gênero, mesmo que em alguns casos o autor pretenda afrontá-los). Depois aparecem as demais intertextualidades: o autor irá se referir explicita ou implicitamente a outros textos, e existirão também os textos que, mesmo sem o conhecimento do autor, estarão inscritos no seu discurso.

A questão da intertextualidade é naturalmente bastante complexa, uma vez que ela pode aparecer tanto no texto que o historiador se põe a analisar (as intertextualidades explícitas e implícitas inerentes à construção textual do autor do documento estudado) como também na própria análise do historiador, que na sua leitura do documento estabelece intertextualidades em diversos níveis. É por isso que Eliseo Verón, em um livro intitulado "A Produção do Sentido" (1979), escreve que “não se analisa jamais um texto: analisa-se pelo menos dois, quer se trate de um segundo texto escolhido explicitamente para a comparação, quer se trate de um texto implícito, virtual, introduzido pelo analista, muitas vezes sem que ele o saiba” .

A história da historiografia inscreve-se em um gradual aprendizado do historiador diante dos textos com os quais ele deverá lidar. Muito aconteceu desde as primeiras aproximações positivistas e historicistas, especialmente preocupadas com as críticas interna e externa do texto, mas ainda ingênuas no tratamento do discurso. A Psicanálise, a Lingüística, a Semiótica e as teorias da Comunicação revolucionaram as possibilidades de interpretar um texto, e destas revoluções o historiador de hoje se vale.

Como já se deve ter percebido, não existe certamente uma técnica única que possa ser aplicada à análise de texto para todos os casos. O primeiro contato do historiador com a sua fonte textual consiste, de qualquer modo, em fazer-lhe algumas perguntas fundamentais (já se disse que o documento só fala quando o historiador faz as perguntas certas). Se, como dissemos antes, a boa análise deve abranger simultaneamente o contexto, o intertexto e o intratexto, o historiador pode começar por identificar a procedência da fonte, a sua inserção em uma sociedade mais ampla, as condições de sua produção (aspectos que, se tivéssemos de resumi-los em uma indagação primária, parecem perguntar ao texto: “de onde vens?”). Somente em seguida virão as perguntas que começam a perscrutar os caminhos internos do texto, ou a abrir as portas secretas de sua decifração. “Com quem falas”, “Do que falas?”, mas também “Sobre o que silencias?”.

O conteúdo de um texto, cedo aprende o historiador, não pode se resumir à superfície de sua mensagem. Há os entreditos, os interditos, os não-ditos, o vocabulário revelador. Se texto é falso, ou se ele mente, tanto melhor, pois o historiador poderá perguntar: “por que mentes?”. Não serão raras as vezes em que o analista irá encontrar o que procura precisamente nas contradições de um texto, seja ao nível do intratexto (as contradições internas) ou ao nível do intertexto (as contradições que aparecem no confronto com outras fontes). Ao historiador, o texto costuma falar através dos seus detalhes mais insignificantes, como um criminoso que fala através das pistas que deixa escapar descuidadamente.
.

[o presente texto foi extraído do livro "O Campo da História"]

[BARROS, José D'Assunção. O Campo da História. Petrópolis: Editora Vozes, 2011, 8a edição. p.134-140]


__________________________

Referências:

BARROS, José D'Assunção. O Campo da História. Petrópolis: Vozes, 2011, 8a edição.
BARTHES, Roland. Elementos de Semiologia. São Paulo: Cultrix, 1996.
VERÓN, Eliseu. A produção do sentido. São Paulo: Verbo, 1982

Fonte Histórica (2) A Expansão Documental

O debate sobre as “fontes históricas” remete-nos a um dos dois fatores que constituem a mais irredutível singularidade da História como campo de conhecimento. De fato, se por um lado a História pôde um dia ser definida por Marc Bloch, nos anos 1940 como a “Ciência que estuda o Homem no tempo”, a obrigatoriedade do uso de “Fontes Históricas” pelo Historiador, como único meio de atingir diretamente este homem que se inscreve no Tempo, é certamente o segundo fator inseparável do conhecimento histórico. A ‘centralidade da dimensão temporal’, neste tipo de conhecimento que é a História, e a ‘utilização das Fontes’, pelo Historiador que o produz, são precisamente os dois fatores que fazem com que a História possa ser distinguida de qualquer outro campo de saber.

Começaremos por lembrar que Seignobos, em um manual escrito no início do século XX, um dia registrou uma frase que terminou por se tornar célebre: “Sem documento não há história” (1901). Com isto buscava situar a fonte histórica como o princípio da operação historiográfica. A frase seria contraposta, algumas décadas depois, por uma outra que seria criticamente pronunciada por Lucien Febvre: “Sem problema não há história”. O historiador dos Annales, com isto, queria mostrar que a operação historiográfica principiava na verdade com a formulação de um problema. Seria um problema construído pelo Historiador o que permitiria que ele mesmo constituísse as suas fontes, agora deslocada para o segundo passo da pesquisa.

Hoje, decorridas muitas décadas após os primeiros “combates pela história” travados pelos historiadores dos Annales contra uma historiografia que denominaram “positivista”, pode-se perceber mais claramente que os dois elementos – o “Problema” e a “Fonte” – acham-se frequentemente entrelaçados: se o “Problema” construído pelo historiador sinaliza para algumas possibilidades de “Fontes”, determinadas fontes também recolocam novos problemas para os historiadores. Podemos pensar, a título de exemplos, nas chamadas “fontes seriais”, que permitem aos próprios historiadores formularem novos tipos de problemas que só adquirem sentido no tratamento serial da documentação, ou ainda o caso das “fontes dialógicas”, aqui entendidas como aquelas que permitem ao historiador que sejam acessadas diversas vozes nas sociedades por ele examinadas. Os exemplos nos mostram que, se o “Problema” proposto pelo historiador permite que ele constitua suas fontes de determinada maneira, as próprias fontes históricas também devolvem algo ao historiador. Dito de outra forma, pode-se dizer que, na operação historiográfica, o sujeito que produz o conhecimento e os meios de que ele se utiliza interagem um sobre o outro, de modo que, no fim das contas, se o Historiador sempre escreve seu texto de um lugar no mundo social e no tempo, ao mesmo tempo ele mesmo pode se transformar a partir da sua própria experiência com as fontes.

Vamos lembrar aqui um interessante texto escrito por Carlo Ginzburg em 1979, com o título “Provas e Possibilidades”, no qual o micro-historiador italiano chama atenção para uma questão peculiar. Embora reconhecendo que o trabalho do historiador é inicialmente direcionado por um certo “imaginário historiográfico” (tal como propôs Hayden White em Meta-História) e também por um lugar social (tal como postula Michel de Certeau em “A Operação Historiográfica”), Ginzburg esmera-se em perscrutar o fato de que o historiador também se modifica pela interatividade com relação à alteridade trazida pela documentação (GINZBURG, 1989, p.196). Vale dizer, não é apenas um determinado lugar social-institucional, e uma certa “imaginação historiográfica” – ou o seu Presente – o que dá uma direção ao trabalho do historiador. O próprio Passado, através das especificidades de sua documentação, traz ao historiador vozes com as quais ele interage, colocando-o em contato com aspectos que passam a integrar a sua própria experiência, e com elementos vários que o reconstroem como sujeito de investigação. Desta forma, a própria documentação examinada traz a sua contribuição adicional para o resultado do trabalho historiográfico não apenas como objeto que se configura em testemunho ou discurso de sua época, mas também abrindo certos caminhos de compreensão e, para além disto, enriquecendo mesmo, como experiência, o próprio historiador que se vê modificado no momento mesmo inicial da pesquisa.

Estas questões são importantes, e ao final da palestra voltaremos a elas. As fontes históricas, além de permitirem que o historiador concretize o seu acesso a determinadas realidades ou representações que já não temos diante de nós, permitindo que se realize este “estudo do homem no Tempo” que coincide com a própria História, também contribui para que o historiador aprenda novas maneiras de enxergar a história e formas de expressão que poderá empregar em seu texto historiográfico. Neste momento, conforme discutiremos no final desta palestra, estabelece-se uma misteriosa possibilidade de contato entre as fontes que instauram a pesquisa e o texto final que o historiador oferece ao seu leitor. Lidar com variedades de fontes históricas, veremos adiante, também instrui o historiador acerca de diferentes e novas possibilidades de expressão – uma questão que cada vez mais tem sido abordada nos tempos recentes. É assim que, ao passo em que foi descobrindo novas possibilidades de fontes históricas, o historiador também viu-se diante de novas possibilidades teóricas e expressivas: são apenas alguns exemplos o “olhar longo” da História Serial, a “escrita polifônica” das fontes dialógicas, o “olhar microscópico” proporcionado por fontes intensivas como os processos-criminais, ou mesmo a “escrita cinematográfica” que pôde ser assimilada por aqueles que estudam o Cinema.

Mas antes de chegar a estas questões mais recentes, principiemos discutindo algumas questões fundamentais para a compreensão da “revolução documental” que ainda não cessou de ocorrer na historiografia desde que a história passou a se postular como uma historiografia científica. Abordaremos, a seguir, alguns aspectos que na verdade estão interligados: a ‘expansão documental’, a multiplicação de metodologias e abordagens das fontes históricas, sobretudo a partir do século XX, e a crescente explicitação do diálogo com as fontes no texto historiográfico.



1.2. Expansão Documental

Já é lugar comum dizer que o século XX conheceu uma extraordinária expansão na possibilidade de tipos de fontes históricas disponíveis ao historiador. A expansão documental começa com a gradual multiplicação de possibilidades de fontes textuais – isto é, fontes tradicionalmente registradas pela escrita – e daí termina por atingir também os tipos de suporte, abrindo para o historiador a possibilidade de também trabalhar com fontes não-textuais: as fontes orais, as fontes iconográficas, as fontes materiais, ou mesmo as fontes naturais. Com o desenvolvimento de novas tecnologias, pergunta-se se já não teremos em pouco tempo um número significativo de trabalhos também explorando as fontes virtuais.

De certo modo, a história da historiografia tem conhecido duas expansões paralelas no universo das fontes historiográficas: de um lado, as fontes textuais, que sempre foram tão amplamente empregadas pelos historiadores, começam a se diversificar; de outro lado, pode ser percebido um contraponto importante que é o da expansão das fontes com novos tipos de suporte. Concentremo-nos por hora no esforço de mostrar a complexidade que abarca a expansão das possibilidades de fontes textuais. O ‘Quadro 1’ procura registrar visualmente esta expansão: na verdade uma expansão que termina por se voltar sobre si mesma. O esquema visual parte de algumas das fontes que, um tanto impropriamente, chamaremos de ‘fontes realistas’ (1) – que são aquelas que se apresentam aos historiadores como discursos narrativos que tentam prestar conta de acontecimentos que se deram realmente, ou que então tentam convencer os seus leitores da natureza real do objeto de suas narrativas. Dos relatos de natureza historiográfica aos relatos de viagem, passando pelas hagiografias, crônicas e biografias, neste tipo de fontes costumava se concentrar o trabalho dos historiadores até o século XIX.

Então, podemos dizer que ocorrerá a primeira revolução documental da historiografia – ou, se quisermos, a primeira fase de uma revolução historiográfica que mais adiante teria, no século XX, o seu segundo tempo. O século XIX, efetivamente, introduz o trabalho dos historiadores – para além das fontes que já eram utilizadas anteriormente – no mundo dos arquivos que começam a ser montados por toda a Europa em um monumental esforço incentivado pelos governos nacionais. Os ‘Documentos Políticos’ (2) – notadamente da “grande história política” – os ‘documentos diplomáticos’ relacionados à intrincada dialética da Guerra e da Paz (3), a documentação governamental (4), com suas leis e atos governamentais diversos, passarão a constituir a base do trabalho do historiador, que começa a desenvolver as suas primeiras técnicas de crítica documental. Por muitos dos historiadores oitocentistas, estas fontes serão tratadas sobretudo como depósitos de informações. De todo modo, pode-se dizer que a Crítica Documental tornou-se uma contribuição inestimável desta interação entre o historiador e as fontes político-institucionais. Com elas, o historiador aprendeu o “olhar meticuloso” tão precioso para a prática historiográfica.

Uma segunda revolução documental inicia-se nos anos 1930. Ou, se quisermos, podemos dizer que o universo das fontes históricas começa a se expandir novamente. Para além das fontes já acumuladas pela revolução documental anterior, a multiplicação de objetos históricos – agora concentrada sobretudo em aspectos sociais e econômicos – permitirá que alguns setores da historiografia comecem a centrar a sua atenção nos documentos administrativos (5), comerciais (6), eclesiásticos (7), cartoriais (8); fontes que logo seriam exploradas pelos historiadores a partir de uma nova abordagem, serial ou quantitativa. Na França, um país cuja historiografia exerceu grande influência sobre a historiografia brasileira, é conhecido o papel que a “história serial” exerceu até os anos 1970. Um inquestionável fruto colhido pela historiografia ao entrar em contato com as fontes seriais, mas também presente nas diversas modalidades historiográficas que passaram na mesma época a trabalhar com a “longa duração”, foi um novo tipo de olhar sobre a história: esse “olhar longo” que se estende sobre a “série documental” ou sobre grandes extensões de tempo ou de espaço e que, a partir daí, aprimora-se na habilidade de identificar permanências, de perceber ciclos, de avaliar pequenas variações no decurso de uma série de dados. O “olhar longo” junta-se assim ao “olhar meticuloso”, de modo que o historiador torna-se aqui um pouco mais completo.

Novos métodos costumam sempre acompanhar cada expansão no universo de fontes historiográficas. Quando assistimos nos anos 1980 a um crescente interesse dos historiadores pelas fontes jurídicas (9) e policiais (10) – a exemplo dos processos-crime e da documentação de inquisição – logo os historiadores aprendem a tirar um máximo partido destas fontes que são ao mesmo tempo intensivas – isto é, extraordinariamente ricas de detalhes – e dialógicas, no sentido de que são espaços de manifestação para muitas vozes sociais. Surge tanto uma escrita da história polifônica, voltada para a explicitação das várias vozes sociais, como também a Micro-História – uma modalidade historiográfica que se mostra pronta a mergulhar no projeto de enxergar grandes questões sociais a partir de uma escala de observação reduzida, porém com um olhar intensivo, que aproxima o historiador do olhar do detetive ou do criminalista que investigam indícios, mas também do médico que tenta enxergar a grande doença por trás dos pequenos sintomas. Vamos denominar a este novo olhar que se oferece aos historiadores dos anos 1980 de “olhar interior”, pois se ele é um olhar capaz de captar os detalhes mais reveladores, é também um olhar capaz de apreender a complexidade interna das realidades examinadas, além de captar a polifonia interna que se oculta em todas as formações sociais. Mais uma vez o historiador desenvolve a sua completude: o “olhar meticuloso”, o “olhar longo” e o “olhar interior” agora se integram como possibilidades para a constituição de uma historiografia mais plena.

As últimas conquistas, talvez sob a égide de uma historiografia que traz para o centro do cenário histórico o mundo da Cultura – estão nas fontes que se relacionam à vida privada (11) e a todos os tipos de literatura (12). Também não é por acaso que, em um mundo que é invadido pelo discurso, intensifique-se nesta mesma época a interdisciplinaridade com a Lingüística, a Semiótica e as Ciências da Comunicação, oportunizando aos historiadores novas metodologias de análise textual e discursiva que hoje já se tornaram patrimônio da historiografia contemporânea. Ao mesmo tempo, pode-se dizer que, de alguma maneira, o historiador também conseguiu incorporar com estas novas experiências um certo “olhar estético”. A si mesmo, começou a se perceber como literato, e muitos passaram a buscar aprimorar novas formas de expressão na elaboração do seu texto historiográfico, conforme mais adiante discutiremos.

Tal como já assinalamos, um esquema como o que estamos tentando representar a complexidade das fontes históricas não pode ser senão circular: uma figura que se desdobra sobre si mesma. As fontes narrativas realistas (1), das quais partíramos, oferecem nos anos 1980 novas incorporações através dos jornais, e o chamado retorno da história política permite que os historiadores também incorporem, às fontes políticas (2) com as quais já lidavam, a documentação de partidos políticos e os discursos proferidos nestes mesmos ambientes.

As ampliações no universo de possibilidades das fontes textuais, já o dissemos, são acompanhadas de um movimento paralelo. Se os historiadores haviam começado a diversificar as suas fontes textuais, desde princípios do século XX, também começam a ser exploradas em um ritmo crescente as fontes com novos tipos de suporte. As imagens, por exemplo, deixariam de ser apenas objetos temáticos para os historiadores que já se interessavam pela História da Arte, e passaram a ser também fontes para historiadores interessados em chegar todo o tipo de questões sociais, econômicas e políticas através das fontes iconográficas. A História Oral, também nos anos 1980, conquista o seu lugar no campo da historiografia, e reaviva mais uma vez um diálogo com a Antropologia, com a qual a História já havia estabelecido tantas vagas de contatos interdisciplinares.

Poderíamos também seguir adiante na enumeração de conquistas historiográficas relacionadas às fontes não-textuais: os arquivos sonoros, o Cinema, a cultura material e mesmo as fontes naturais – aqui entendida como a natureza interferida pelo homem – abrem-se como novas possibilidades. Podemos hoje nos perguntar pelas fontes virtuais. Como os historiadores passarão a trabalhar com este tipo de fontes?


Leia a continuação deste texto em: http://ning.it/hhjbtC

[BARROS, José D'Assunção. “Fontes Históricas – um caminho percorrido e perspectivas sobre os novos tempos” in Revista Albuquerque. Vol.3, n°1, 2010]




________________________

Referências:

BLOCH, Marc. Apologia da História. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001 [original publicado: 1949, póstumo] [original de produção do texto: 1941-1942]
GINZBURG, Carlo. Indagações sobre Piero: o Batismo - o Ciclo de Arezzo - a Flagelação. Tradução de Luiz Carlos Cappellano. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989..

Fonte Histórica (1) O que é fonte histórica

“Fonte Histórica” é tudo aquilo que, produzido pelo homem ou trazendo vestígios de sua interferência, pode nos proporcionar um acesso à compreensão do passado humano. Neste sentido, são fontes históricas tanto os já tradicionais documentos textuais (crônicas, memórias, registros cartoriais, processos criminais, cartas legislativas, obras de literatura, correspondências públicas e privadas e tantos mais) como também quaisquer outros que possam nos fornecer um testemunho ou um discurso proveniente do passado humano, da realidade um dia vivida e que se apresenta como relevante para o Presente do historiador.

Incluem-se como possibilidades documentais desde os vestígios arqueológicos e outras fontes de cultura material (a arquitetura de um prédio, uma igreja, as ruas de uma cidade, monumentos, cerâmicas, utensílios da vida cotidiana) até representações pictóricas e fontes da cultura oral (testemunhos colhidos ou provocados pelo historiador). As investigações sobre o genoma humano fizeram do corpo e da própria genética uma fonte histórica igualmente útil e confiável, que inclusive permitiu que os historiadores passassem a ter acesso aos primórdios da aventura humana sobre a Terra, forçando a que se problematize o antigo conceito de “pré-história” que antes sinalizava uma região da realidade um dia vivida que estava até então proibida aos historiadores.

De igual maneira, a partir do século XX, quando a geografia passou a atuar interdisciplinarmente com a história, mesmo uma paisagem natural passou a ser encarada como uma possibilidade documental. O mesmo se pode dizer das relações entre a história e a lingüística, que trouxeram os próprios fatos da língua para o campo das evidências históricas, e também das perspectivas que se produziram na confluência entre História e Antropologia, que permitem que se abordem como fontes históricas as evidências e heranças imateriais, já sem nenhum suporte físico e concreto, como as festas dramáticas populares e os ritos religiosos que se deslocam e perpetuam-se na realidade social, os sistemas integrados e reconhecíveis de práticas e representações, os gestos e modos de sociabilidade, os bens relacionáveis ao chamado ‘patrimônio imaterial’ (modos de fazer algo, receitas alimentares, provérbios e ditos populares, anedotários, apenas para citar alguns exemplos).

É certo que houve um longo desenvolvimento historiográfico até que chegasse o momento em que, para além dos documentos e fontes concretizadas em papel ou qualquer outro material, fossem também admitidas as ‘fontes imateriais’ como campos de evidências das quais poderia o historiador se valer. De todo modo, pode-se dizer que nos dias de hoje não há praticamente limites para um historiador quanto à possibilidade de transformar qualquer coisa em fonte histórica. Um repertório de gestos, por exemplo, pode ser revelador de permanências do passado. Lembremos o hábito de cumprimentar tirando o chapéu, que provém do repertório de atitudes medievais: quando um cavaleiro cumprimentava o outro, tirava o elmo em sinal de que suas intenções eram pacíficas (sem o elmo, peça bélica defensiva, manifestava algo como uma proposta de desarmamento). Foram-se as batalhas e os elmos, e veio a sociedade oitocentista dos chapéus burgueses. O gesto, contudo, manteve-se incrustado no repertório de atitudes, e mesmo com os chapéus em desuso ainda permanece como um movimento que toca a testa como que para tirar o “elmo imaginário”. É assim que, em certos hábitos enraizados, expressos na vida cotidiana e na prática comportamental – também aí poderemos ir buscar uma fonte, uma evidência ou um testemunho do passado.

A ampliação documental foi uma conquista gradual dos historiadores; verificou-se à medida que a própria Historiografia expandia seus limites no decurso do século XX. O historiador adotava novas perspectivas, passava a dispor de novos métodos e a contar com o intercurso de outras disciplinas (Geografia, Lingüística, Psicologia – apenas para mencionar três dos campos relacionados aos exemplos antes expostos: a paisagem, a palavra e o gesto). Tudo isto e mais o interesse por novos objetos, até então desprezados pela historiografia tradicional, fez com que a historiografia contemporânea caminhasse para necessitar cada vez mais de outras fontes ou documentos que não só as crônicas e registros arquivísticos. Assim, se os Arquivos são fundamentais para o trabalho dos historiadores, eles estão longe de serem suficientes para fornecerem tudo o que os historiadores necessitam para o seu trabalho. Na verdade, a questão de pesquisar ou não em fontes de arquivos tem muito mais a ver com o objeto ou com os problemas históricos que estão sendo examinados do que qualquer outra coisa.

Tem a ver com esta questão, aliás, outra palavra que muito freqüentemente é empregada como sinônimo de fonte histórica: ‘documento histórico’. Na verdade, há algum tempo atrás esta palavra era até mais comum no linguajar do historiador do que ‘fonte histórica’; e, antes dela, até a historiografia do século XVIII, predominava uma outra palavra: "monumento". A expressão ‘documento histórico’, que se tornou muito típica no século XIX, mas que continuou a ser usada com sentidos ampliados no século XX, estava primordialmente muito relacionada tanto com os arquivos que começaram a ser organizados sistematicamente na época, como também com a maneira como então se concebia a História. Esperava-se que o historiador documentasse, no sentido jurídico, todas as afirmações que fizesse no decorrer de sua narrativa histórica. Daí a palavra “documento”, que, além de possuir uma origem jurídica, estava muito associada à idéia de prova, de “comprovação”.

Hoje em dia, empregam-se indistintamente as expressões “fonte histórica” ou “documento histórico”. Mas nota-se uma certa tendência à preferência cada vez maior pela expressão “fonte histórica”, talvez porque a expressão “documento histórico” tenha ficado um pouco associada à historiografia positivista, e um pouco também porque o historiador não espera mais dos materiais e evidências que lhes chegam do passado apenas ou necessariamente uma “prova”, encarando também as fontes como discursos a serem analisados ou redes de práticas e representações a serem compreendidas. Por isto, tende-se freqüentemente à utilização da palavra “fonte” na atual prática historiográfica. Em contrapartida, quando um historiador utiliza nos dias de hoje a palavra ‘documento histórico’, ele pode estar se referindo a qualquer tipo de fonte histórica, e não apenas àqueles tipos mais específicos de documentos textuais que os positivistas priorizavam.