segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Os Conceitos e a História

Os textos anteriores, em torno da operacionalização de conceitos nas Ciências Humanas, abordaram questões importantes sobre a conceituação em História. Quando se fala em conceitos, existe um aspecto, contudo, que é particularmente importante, e que faz a História se distinguir do que acontece com outras ciências humanas como a Sociologia, Geografia, ou a Antropologia.
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Reinhart Koselleck - historiador que se especializou em uma modalidade historiográfica que hoje é conhecida como "História Conceitual" - faz uma digressão importante sobre o uso dos conceitos pelos historiadores em seu célebre livro 'Futuro Passado'. Vamos discorrer um pouco sobre estas considerações, que também são retomadas com maestria por Antoine Prost no capítulo sobre conceitos de seu livro 'Doze Lições sobre a História'.
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Devemos considerar, antes de mais nada, que todo historiador trabalha com dois níveis de conceitos, e também com dois níveis de realidade, da mesma forma que seu texto é constituído em dois níveis de escrita. Isto porque o historiador (1) escreve da sua própria época, sobre uma outra época. (2) escreve seu discurso de historiador, mas incluindo o discurso de uma outra época (a época trazida pelas fontes históricas).
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O historiador lida com idéias, conceitos e palavras que são de sua própria época, ou melhor - que são elaborados ao nível do discurso dos historiadores. Mas ele também lida com idéias, conceitos e palavras que são da época que está examinando. Ele só tem que saber quando está fazendo uma coisa, e quando está fazendo outra, e a partir daí refletir sobre a adequação, ou não, do conceito que está pretendendo utilizar. Isto porque o uso inadequado de conceitos pode gerar, eventualmente, um problema sobre o qual refletiremos mais adiante, em um outro texto: o do Anacronismo.
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Por exemplo, vamos retomar uma reflexão de Antoine Prost sobre o assunto e considerar o conceito de "crise", aplicando-o à "crise do Antigo Regime na época da Revolução Francesa". Em 1789, a palavra "crise" não era utilizada na História. Era uma palavra que existia na Medicina, mas não na História. Quem trouxe essa palavra pela primeira vez para a História foi Ernst Labrousse, na terceira década do século XX. A palavra caiu ttão bem no gosto dos historiadores e economistas, que hoje em dia, falar em "crise econômica" tornou-se lugar comum para a História e para a Economia, e conquistou mesmo o grande público. "Crise", desta maneira, é um conceito da nossa época.
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Isto não impede que nós possamos utilizar este conceito de nossa época para tentar entender uma sociedade anterior, quando não havia o conceito de crise. Podemos também utilizar a "análise estatística" para entender o movimento dos preços no século XIII, mesmo que nessa época não existisse "análise estatística". Podemos, por exemplo, utilizar o conceito de "inconsciente", que surge no século XIX, um pouco antes de Freud, para nos referimos a sociedades da antiguidade ou da Idade Média, ou do período iluminista.
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Embora estas maneiras de ver as coisas - com os recursos da análise econômica, da estatística e da psicanálise - sejam típicas de nossa época, e só tenham se tornado possíveis em nossa época, isso não impede que as utilizemos para analisar uma outra época. A nossa época nos permite fazer novas perguntas. E com estas perguntas novas, só possíveis em nossa própria época, lançamos um novo olhar para o passado. Vemos este passado de maneira diferenciada de como o viram nossos pais e nossos avós, metaforicamente falando.
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Por outro lado, existem casos em que o uso inadequado de um conceito pode produzir o caso do Anacronismo, que ocorre, por exemplo, quando projetamos indevidamente categorias nossas nas mentes de seres humanos do passado, que estamos tentando representar através das fontes históricas. Por exemplo, constitui grosseiro anacronismo falar em algo como "O Feminismo na Grécia Antiga". Quando fazemos isto, estamos supondo, indevidamente, que uma cidadã grega da Antiguidade podia pensar como uma feminista dos dias de hoje. Estamos, em uma palavra, projetando nas mulheres da Antiguidade um conceito nosso, datado de nosso tempo e que está inteiramente vinculado ao contexto de nossa época. Não era possível a uma mulher da Antiguidade pensar como uma feminista. O 'Feminismo' é um movimento que só poderia ter surgido no contexto das sociedades industriais, e particularmente a partir do período em que a mulher conquista um lugar reconhecido no mercado de trabalho assalariado,ao lado da afirmação de direitos políticos que a equiparariam aos homens. O Feminismo é também um "movimento" específico, com conotações culturais e políticas. Não pode ser conceituado apenas como uma forma de comportamento atemporal.
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O problema com a projeção anacrônica do conceito de "feminismo" nas mulheres da Antiguidade decorre do fato de que estamos projetando uma forma de pensamento de hoje em pessoas que existiram há tempos atrás, quando estas formas de pensamento não teriam sido possíveis. Neste caso, estamos considerando um conceito pertinente ao 'nível 1' - a época do próprio historiador - como um conceito pertencente ao 'nível 2', que é o nível da época das fontes examinadas. Mas o problema mesmo é que, neste caso específico do Feminismo, ocorre uma deformação da mentalidade dos indivíduos da Antiguidade. Era possível enxergar "crise" na Grécia Antiga, mesmo que os gregos antigos não conhecessem este conceito, e isto porque a utilização deste conceito não deforma a mentalidade ou os modos de sentir e de se comportar dos gregos antigos. Mas não é possível utilizar o conceito de "feminismo" para estes mesmos gregos antigos, simplesmente porque o uso deste conceito implica em uma deformação do pensamento grego.
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Saber quando o uso de um conceito implica em anacronismo ou não é de fato uma das competências mais importantes a serem desenvolvidas pelos historiadores. No próximo post, falaremos mais especificamente sobre o problema do "Anacronismo".

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