segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Os Conceitos e sua instrumentalização teórica

O que são os conceitos, e como eles podem ser empregados operacionalmente na História, nas Ciências Sociais e nas Ciências Humanas? Como se relacionam com a realidade que pretendem ajudar a descrever, ou com a base teórica que ampara uma determinada argumentação em áreas como a História, a Sociologia, a Antropologia, a Geografia? O objetivo deste texto será refletir livremente sobre estas questões, visando auxiliar didaticamente o seu entendimento e as suas possibilidades de esclarecimento no âmbito da metodologia científica aplicável às ciências humanas de modo geral, e à História, mais especificamente. Nosso objetivo será, de um lado, discutir a questão dos conceitos em um nível mais abstrato e filosófico, e, de outro lado, oferecer exemplificações concretas relacionadas às ciências sociais e humanas.
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Antes de tudo, consideraremos, para nossa própria operacionalização, que um conceito pode ser entendido como uma formulação abstrata e geral, ou pelo menos como uma formulação passível de generalização, que o indivíduo pensante utiliza para tornar alguma coisa inteligível nos seus aspectos essenciais ou fundamentais, para si mesmo e para outros. Visto desta forma, o conceito constitui uma espécie de órgão para a percepção ou para a construção de um conhecimento sobre a realidade, mas que se dirige não para a singularidade do objeto ou evento isolado, mas sim para algo que liga um objeto ou evento a outros da mesma natureza, ao todo no qual se insere, ou ainda a uma qualidade de que participa.
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Vale lembrar que este entendimento do conceito simultaneamente como algo instrumental (algo que pode ser utilizado como instrumento) , e como algo que se apresenta como uma unidade de conhecimento produzido, não é um consenso no âmbito dos estudos de metodologia. De fato, o conceito pode, de modo diversificado, ser alternadamente discutido como unidade de pensamento, unidade de conhecimento e unidade de comunicação . Ingetraut Dahlberg, em um artigo intitulado “Teoria do Conceito” (1998: 101-107), acrescenta que, para que se possa dizer que estamos propriamente diante um conceito, é preciso identificar necessariamente em torno da expressão considerada três dimensões: o referente, o termo e as características. As ‘características’ correspondem mais especificamente às propriedades atribuídas ao ‘referente’, que por sua vez é uma unidade de pensamento através da qual se torna possível falar (pensar) em “pássaro”, conceitualmente, para além dos pássaros específicos que existem efetivamente na realidade observável, singularizados, cada um diferente do outro. Mas a isto voltaremos mais adiante. ‘Termo’, por fim, corresponde à palavra ou grupo de palavras que está sendo utilizada para designar o conceito (a expressão verbal “pássaro”, por exemplo). Embora em outros campos do saber, como a matemática, o ‘termo’ possa ser uma fórmula, um algarismo ou um símbolo, para o nosso âmbito de estudos, invariavelmente os “termos” se apresentam como palavras ou como um grupo mínimo de palavras.
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Voltando ao que dizíamos sobre a dimensão de generalização trazida pelo conceito, podemos considerar que, muito habitualmente, os conceitos correspondem a categorias gerais que definem classes de objetos e de fenômenos dados ou construídos, e o seu objetivo é sintetizar o aspecto essencial ou as características existentes em comum entre estes objetos ou fenômenos. Desta maneira, a Revolução Francesa ou a Revolução Americana não são conceitos, mas “revolução” sim. Da mesma forma, o conceito marxista de “modo de produção” pode encontrar um desdobramento no “modo de produção asiático” ou no “modo de produção feudal”: mas não tem sentido, por exemplo, dizer que se pretende conceituar o “modo de produção feudal” em uma determinada região da Europa medieval. O que se está fazendo neste último caso é descrever uma situação social específica, que pode até se enquadrar no que habitualmente se define como “modo de produção feudal”, mas que neste tipo de operação (a descrição de um fenômeno) virá misturada com singularidades que não fazem parte do âmbito conceitual.
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De maneira análoga, pode-se “explicar” historicamente o que foi a Revolução Francesa a partir de um certo ponto de vista, mas não se pode “conceituá-la”, uma vez que a Revolução Francesa constitui um conjunto singular e único de situações e aspectos. Uma descrição histórica, ou uma narrativa historiográfica, mesmo que sintetizada, não pode ser confundida com uma conceituação. A explicação construída sobre a Revolução Francesa, por outro lado, poderá se valer dentro dela do uso do conceito de “revolução”, mediante o qual, se a explicação for levada até este ponto, o leitor poderá saber o que há de comum entre a Revolução Francesa e a Revolução Chinesa e a Revolução Cubana, e o que habilita chamar a cada um daqueles eventos e situações de “revolução”.
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Este tipo de conceito, quando bem formulado, representa somente os elementos que são absolutamente essenciais ao objeto ou fenômeno considerado na sua generalidade, e deste modo ele deve trazer para a sua definição aspectos que são comuns a todas as coisas da mesma espécie, deixando de fora fatores que são somente particularizantes de um objeto ou fenômeno singular.
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Exemplos de conceitos que reúnem objetos particulares em uma única classe podem ser encontrados na própria vida cotidiana. “Pássaro”, por exemplo, é um conceito construído a partir da abstração das características que todos os pássaros têm em comum. Trata-se, por outro lado, de um exemplo de conceito muito menos abstrato que o de “revolução”, uma vez que as características que todos os pássaros têm em comum, e que constituem o conceito de “pássaro”, são facilmente observáveis ou mensuráveis. Já a elaboração do conceito de “revolução”, conforme teremos oportunidade de verificar mais adiante, requer um grau maior de abstração que transcende a mera observação direta. Alguns autores chamam a este tipo de conceito construído a um nível de abstração mais elevado de constructo .
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Enquanto o conceito propriamente dito tem os seus elementos mais imediatamente apreensíveis (por observação ou por mensuração), o constructo não permite uma apreensão ou mensuração direta de suas propriedades ou aspectos essenciais, e muitas vezes tem de ser construído utilizando-se de outros conceitos, de menor nível de abstração, como materiais de base. Assim, “peso” é um conceito de nível mais direto de apreensão (já que os objetos se apresentam imediatamente à sensibilidade humana como “leves” ou “pesados”). “Volume” remete a apreensões imediatas que estão relacionadas ao espaço ocupado por um corpo. “Massa” é um conceito mensurável fisicamente com os instrumentos adequados (a massa de um corpo depende simultaneamente de quantos átomos ele contém e da massa individual destes átomos). “Densidade”, contudo, é um conceito que necessita de um nível maior de abstração: pode ser definido no caso como uma ‘relação entre “massa” e “volume” (massa  volume). Nesta situação, a elaboração do constructo “densidade” necessitou da utilização dos conceitos de “massa” e “volume”, de menor nível de abstração.
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Retornando à idéia de “revolução”, mais adiante veremos que este conceito necessita da utilização de outros materiais conceituais para a sua elaboração, construindo-se na combinação ou na relação entre conceitos e noções como os de “violência”, “mudança”, “liberdade”, “movimento social”, que de um modo geral são conceitos mais imediatamente apreensíveis (todos já estão familiarizados com a “violência” ou com a idéia de “mudança” a partir da sua própria vida cotidiana). Assim, mais rigorosamente, “revolução” seria um constructo. Para simplificar, neste artigo chamaremos de “conceitos” às diversas elaborações nos vários níveis de abstração, independentemente de serem constructos ou conceitos propriamente ditos.
Vimos acima que “revolução” ou “pássaro” são conceitos que sintetizam as características essenciais de fenômenos ou objetos do mesmo tipo. Mas vale lembrar que existem conceitos que não se referem propriamente a categorias gerais nas quais se enquadram objetos particulares, mas sim a propriedades, a processos ou situações generalizadas que ajudam a compreender o mundo circundante. O conceito darwiniano de “seleção natural”, por exemplo, foi cunhado para representar um processo global relativo a um sistema de mútuas interações do qual participariam todos os seres vivos na sua luta pela sobrevivência. O conceito de “centralização política” articula-se a uma certa maneira de ver o processo mediante o qual determinados poderes e atribuições de controlar e organizar a sociedade passam a se concentrar em torno de um núcleo estatal. O conceito de “imaginário” procura dar conta de uma dimensão da vida humana associada à produção de imagens visuais, mentais e verbais, na qual são elaborados ‘sistemas simbólicos’ diversificados e na qual se constroem ‘representações’.
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Estes três exemplos (“seleção natural”, “centralização”, “imaginário”) referem-se a conceitos que não produzem, necessariamente, sistemas de classificação. Da mesma forma, atributos ou propriedades podem ser conceituados, como “justiça”, “liberdade”, “densidade”.
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O importante é compreender que o conceito é uma abstração elaborada a partir da generalização de observações particulares. Sobretudo, é preciso ter em mente que o conceito é uma construção lógica que tem o objetivo de organizar a realidade para o sujeito que busca conhecê-la, mas não se devendo confundir a abstração conceitual com esta mesma realidade. Assim, os conceitos não existem como fenômenos reais, mesmo que tentem representar os fenômenos reais (a não ser, é claro, em teorias idealistas como a platônica, onde as idéias têm uma existência concreta para além do universo imaginário criado pelos homens na sua busca de compreender o mundo).
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Não obstante, apesar de não possuir uma existência real, o conceito é um instrumento imprescindível não apenas para o conhecimento científico, como para a própria vida comum. Se os objetos e fenômenos não pudessem ser concebidos em termos de semelhanças e diferenças, com a ajuda dos conceitos, a ciência e uma série de outras atividades humanas fundamentais simplesmente não seriam possíveis. Neste sentido, o conceito é um mediador necessário entre o sujeito pensante e a realidade.
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Em se tratando de “conceitos científicos”, acrescentaríamos que o conceito deve possuir destacada clareza e suficiente precisão, uma vez que são eles que irão definir a forma e o conteúdo da teoria a ser construída pelo sujeito de conhecimento. Distingue-se, portanto, de outros instrumentos importantes mas certamente mais vagos e menos precisos na comunicação humana, como os “termos” – que são expressões que habitualmente passam a fazer parte do vocabulário de um campo disciplinar ou de um universo temático mas sem uma maior precisão conceitual. Poder-se-ia falar ainda das “noções”, que são ‘quase conceitos’, mas ainda funcionando como imagens de aproximação de um determinado objeto de conhecimento que ainda não se acham suficientemente delimitadas. É possível, neste sentido, que um estudioso crie uma “noção” e que, ao longo de diversos trabalhos científicos – seus e de outros – esta noção vá gradualmente se transformando em “conceito” ao se adquirir na comunidade científica uma consciência maior dos seus limites, da extensão de objetos à qual se aplica, e também ao se clarificar melhor o seu polissemismo interno com as conseqüentes escolhas dos estudiosos. Diga-se de passagem, os “termos” e “noções” são igualmente ‘instrumentos’ imprescindíveis para o estudioso, cumprindo notar que o conceito pode ser metaforicamente comparado a um “instrumento de alta precisão”


O presente texto foi extraído, com adaptações, do 'capítulo 5' do livro "O Projeto de Pesquisa em História". (BARROS, José D'Assunção. O Projeto de Pesquisa em História. Petrópolis: Editora Vozes, 2009, 6a edição)

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