A escolha de um tema para pesquisa mostra-se diretamente interferida por alguns fatores combinados: o interesse do pesquisador, a relevância atribuída pelo próprio autor ao tema cogitado, a viabilidade da investigação, a originalidade envolvida. Mas é preciso reconhecer que, por outro lado, a estes fatores mais evidentes vêm se acrescentar inevitavelmente outros dos quais o próprio pesquisador nem sempre se apercebe. Existe por exemplo uma pressão indelével que se exerce sobre o autor a partir da sua sociedade, da sua época, dos paradigmas vigentes na disciplina em que se insere a pesquisa, da Instituição em que se escreve o pesquisador, ou do conjunto dos seus pares virtuais e concretos.
Tudo isto incide de maneira irresistível e silenciosa sobre o autor, mesmo que disto ele nem sempre se dê conta. Tornar-se consciente dos limites e desdobramentos sociais e epistemológicos de uma temática é uma questão estratégica importante para aquele que se empenha em viabilizar uma proposta de pesquisa, sendo forçoso reconhecer que o sucesso na boa aceitação de um projeto depende em parte da capacidade do seu proponente em conciliar os seus interesses pessoais com os interesses sociais mais amplos. Começaremos então por aqui.
Já se disse que um tema de pesquisa histórica (ou de qualquer outra modalidade de pesquisa) deve ser relevante não apenas para o próprio pesquisador, como também para os homens de seu tempo – estes que em última instância serão potencialmente os leitores ou beneficiários do trabalho realizado. Daí a célebre frase, cunhada por Benedetto Croce e reapropriada por Lucien Febvre[1], de que “toda história é contemporânea”. Sempre escrevemos a partir dos olhares possíveis em nossa época, e necessariamente escreveremos não só sobre aquilo que de nossa parte consideramos ser relevante, mas também sobre aquilo que tem relevância para nossos próprios contemporâneos. Tirando eventuais arroubos visionários e prenunciadores de interesses futuros, todo historiador tem pelo menos um de seus pés apoiado no seu tempo. Por trás de sua escrita, é a um leitor que ele busca (conscientemente ou não).
Visto deste modo, o problema da relevância de um tema histórico atravessa questões algo complexas. É preciso considerar que aquilo que uma época ou sociedade considera digno de estudo poderá ser ou ter sido considerado irrelevante em um outro momento histórico ou situação social. No século XIX, pouca gente imaginava no campo da historiografia ocidental que um dia iriam se tornar tão atrativos os estudos sobre a Mulher nas várias épocas históricas. Mas a partir da segunda metade do século XX este tem sido precisamente um dos temas mais cotejados pelos historiadores do Ocidente. Sem dúvida contribuíram para isto os movimentos feministas, a gradual inserção da mulher no mercado de trabalho, o reconhecimento acadêmico e político das minorias e maiorias oprimidas, e outros tantos processos que se desenvolveram no decurso do século XX.
Foi especificamente sob o contexto destes processos mais amplos que os silêncios historiográficos a respeito da Mulher passaram a ser ciosamente preenchidos pelos historiadores das mais diversificadas tendências, e até com uma certa avidez que buscava como que compensar o tempo perdido pelas gerações anteriores. As próprias mulheres do século XX, por outro lado, passaram a partilhar também aquela função de historiador que antes era exercida quase que exclusivamente pelos homens. De todos os lados surgiram obras sobre “A mulher na Idade Média”, “A mulher escrava no Brasil Colonial”, “A mulher na Revolução Francesa”, e também obras sobre personalidades históricas femininas. Na segunda década do século XX começaram inclusive a ser publicadas, primeiro na França e depois em outros países, obras panorâmicas sobre a História das Mulheres, em vários volumes, abarcando épocas e sociedades diversas.
Assim, um campo temático que em uma época anterior poderia ter sido taxado de irrelevante, ou que naquele momento sequer teria sido cogitado no seio da disciplina histórica, passava a constituir nesta outra época uma escolha historiográfica extremamente significativa. Eis aqui os olhares da sociedade presente e os seus movimentos internos fornecendo caminhos em pontilhado aos historiadores que, por vezes sem percebê-los, vão percorrendo-os quase que espontaneamente.
Existe ainda, para além das questões relacionados ao reconhecimento social da relevância temática, a questão mais delicada das pressões políticas e éticas que se exercem sobre o pesquisador que escolhe o seu tema ou delimita o seu problema de estudo. As escolhas éticas do historiador constituem certamente uma dimensão intrincada e complexa do trabalho histórico, sendo oportuno notar que esta dimensão ética se vê por diversas vezes perturbada por fatores menos relacionados com a “ética” propriamente dita do que com a “política” no seu sentido mais corriqueiro e cotidiano.
Incorporar uma dimensão ética à pesquisa científica é, sem sombra de dúvida, uma das mais legítimas preocupações que devem assaltar o pesquisador neste início de milênio. O cientista que inicia uma pesquisa sobre a possibilidade de clonar seres humanos deve refletir demoradamente sobre as implicações sociais desta possibilidade. O físico que libera as energias do átomo deve refletir preventivamente sobre as possibilidades de utilização das suas descobertas para a indústria bélica – para depois não precisar se refugiar naquele argumento vazio de “neutralidade” que advoga que o papel dos físicos é apenas desenvolver tecnologia, deixando-se aos políticos a obrigação moral de encaminhar adequadamente a utilização dos produtos desta tecnologia.
Da mesma forma, pode-se postular que a escolha de certos caminhos historiográficos e sociológicos deva ser permeada por uma reflexão ética correspondente. A que interesses servem o meu produto? Quais as futuras implicações do que agora escrevo? Que caminhos aqui se abrem, e que caminhos aqui se fecham? Contribuo para um mundo melhor, ou pelo menos mais divertido? É legítimo que o historiador interrogue a si mesmo acerca das responsabilidades envolvidas na leitura da História que ele mesmo produz. “Ciência com consciência”[2] – têm clamado nestas últimas décadas os filósofos de uma nova ecologia do conhecimento. “História com consciência histórica” – deveria ser um dos ecos deste clamor.
Mas há também o outro lado da questão. O “politicamente correto” é uma construção social do momento, como bem sabem os historiadores. O cuidado com o “eticamente adequado” e com o “politicamente correto” deve funcionar como fator enriquecedor, e não como fator imobilizador. Assim, se a sensibilidade do público e da comunidade acadêmica em relação a certo tema ou abordagem beneficia-se de oscilações através do tempo, para o desenvolvimento destas oscilações não deixam de contribuir também, com a sua iniciativa e com a sua praxis, os próprios historiadores. Para além disto, o tempo vivido é sempre o maior avalista de um objeto de estudo. Quantos temas históricos e perspectivas interpretativas – que um dia talvez tenham sido considerados empreitadas tão delicadas quanto caminhar através de um campo minado – não se tornaram possíveis depois que se “esfriaram” os acontecimentos !
Consideremos, a título de exemplo, os eventos traumáticos dos mega-atentados terroristas às torres gêmeas do World Trade Center em Nova York, no início deste novo milênio. Sob o peso do horror de milhares de mortes, dificilmente um pesquisador ocidental poderia enfrentar comodamente – nas proximidades cronológicas e espaciais deste evento – o desafio de escrever uma tese sobre “a importância dos mega-atentados de 2001 para a redefinição de uma futura política internacional mais socialmente conduzida”. Passados alguns anos, certamente começarão a surgir as teses e reflexões políticas menos comprometidas com as reações emocionais imediatas àqueles acontecimentos, e portanto mais acadêmicas ou profissionais. Hoje em dia qualquer historiador americano estuda Saladino, o grande líder islâmico medieval, sem se engajar em uma Cruzada. Mas qual deles se arriscaria – nestes dias seguintes aos mega-atentados, com a fumaça dos escombros ainda chegando aos céus de Nova York – a escrever teses explorando alguns dos lados mais espinhosos desta questão tão minada de ambigüidades?
Vale a pena visitar um ponto de vista exterior à Disciplina para iluminar a reflexão sobre o desejado equilíbrio entre ‘envolvimento ético’ e ‘distanciamento crítico’ na pesquisa histórica. Ao examinar os limites do conhecimento histórico, o antropólogo Da Matta tece alguns comentários que devem ser considerados:
“A eventos distantes no tempo corresponde uma predominância de interpretações acadêmicas em contraste com interpretações políticas; o evento está mais ‘frio’, para usarmos um qualificativo inventado por Lévi-Strauss. Concomitantemente, um evento mais próximo no tempo é um fato ainda se desenrolando entre nós. Um episódio que não esgotou suas ondas de impacto. Daí, certamente, as dificuldades de uma interpretação ‘fria’ acadêmica e a multiplicidade de interpretações políticas. Trata-se de um episódio ‘quente’, que se desenrola diante dos nossos olhos, e que ainda depende de nossa ação sobre ele”[3]
A escolha de um tema, enfim, freqüentemente se faz sob a força de ondas de impacto que nem sempre são percebidas pelos pesquisadores. Por outro lado, se os horizontes de expectativas de uma sociedade exercem sua irresistível influência sobre os historiadores na escolha de seus temas, também as práticas disciplinares vigentes em um período contribuem com a sua silenciosa pressão sobre os pesquisadores, com ou sem a consciência destes. O “paradigma”* de uma determinada disciplina como a História, em certa época, estende-se acima de todos os seus praticantes como um manto invisível, mesmo que haja diferenças radicais entre vários dos setores deste campo disciplinar e também resistências ao paradigma preponderante. Examinemos de perto esta questão.
No mundo ocidental, a Historiografia do século XIX havia se constituído tradicionalmente em torno do campo político, direcionando-se mais especificamente para o desenvolvimento dos Estados Nacionais. Ao lado desta historiografia francamente nacionalista, e freqüentemente imbricada nela, havia também a “História dos Grandes Homens”*, conforme o modelo apregoado pelo historiador escocês Thomas Carlyle. No que concerne ao estilo do seu discurso, de modo geral a Historiografia tendia a ser francamente narrativa (e pouco analítica ou estrutural como ocorreria no século XX). A própria narrativa historiográfica assim produzida era essencialmente uma ‘narrativa linear’ (não dialógica*, e não complexa). Com relação ao ponto de vista em torno do qual se organizava esta narrativa linear, era sempre o do poder instituído, e a História tinha uma tendência a ser quase sempre uma “História Institucional”. Era neste ‘modo historiográfico’ que os historiadores estavam habitualmente mergulhados, e os temas que selecionavam para suas pesquisas e reflexões aí se inscreviam de maneira imperiosa.
Na Historiografia do século XX, pelo menos a partir da sua terceira década, instalou-se ou reforçou-se uma tendência nova, que foi se tornando cada vez mais preponderante. A partir da chamada Escola dos Annales*, das novas formulações marxistas e de tantas outras contribuições historiográficas, consolidou-se precisamente um novo tipo de História, que relativamente ao seu modo de constituir o objeto de estudo e o discurso do historiador pode ser chamada de “História-Problema” – expressão que será aqui tomada no sentido de uma “história problematizada”, construída em torno de hipóteses e de análises de profundidade, e não mais como uma História que é mera ordenação factual ou descritiva.
De certa forma Karl Marx (1818-1883), no próprio século XIX, já havia sido um precursor deste novo tipo de História juntamente com outros historiadores isolados. O fundador do Materialismo Histórico* estava preocupado com um problema muito específico quando elaborava as suas análises sociológicas e históricas: o problema do desenrolar da luta de classes e de sua inserção em um modo de produção específico. Esta história já problematizada proposta pelas obras de Marx contrastava francamente com a produção historiográfica de seu tempo – situação que se veria invertida a partir do século XX.
Já não teria muito sentido para este novo século uma História meramente descritiva ou narrativa, no sentido exclusivamente factual. Aos historiadores impunha-se agora a tarefa não de simplesmente descrever as sociedades passadas, mas de analisá-las, compreendê-las, decifrá-las. Tratava-se, por um lado, de constituir um problema central que guiasse a reflexão historiográfica a ser realizada; de outro lado, cumpria trazer a discussão desenvolvida em torno do problema escolhido para a superfície do discurso.
Exemplificando com casos mais concretos, não faria mais sentido – a não ser em uma obra de divulgação para o grande público – produzir uma história descritiva e narrativa dos acontecimentos que marcaram a Revolução Francesa. O que se exigia do historiador agora era que ele recortasse um problema dentro da temática mais ampla da Revolução Francesa – como por exemplo o problema da “dessacralização do poder público na Revolução Francesa”, o problema da “influência das idéias iluministas nos grupos revolucionários”, ou o problema da “evolução dos preços na crise que precedeu o período revolucionário”.
O “Problema” passou a ser um recorte que deveria ser feito necessariamente no “tema”, conforme os novos parâmetros da própria disciplina histórica. Ao lado disto, o pensamento historiográfico passou a ser cientificamente conduzido por hipóteses, e não mais pela mera ambição descritiva ou narrativa. Levantar questões torna-se a partir de então uma dimensão fundamental para este novo tipo de História, conduzindo-a para muito além das explicações de tipo linear dos antigos historiadores.
De igual maneira, reconheceu-se na História que passou a preponderar no século XX a existência de uma pluralidade de perspectivas possíveis – e passou-se a falar também em uma “História vista de baixo”, em uma história das massas, e mesmo em uma história do indivíduo anônimo (em contraposição à velha biografia dos heróis oficializados). Com tantos novos desenvolvimentos, uma inédita diversidade de temáticas e de problemas possíveis para o trabalho historiográfico pôde ser pensada pelos pesquisadores do século XX, ao passo em que outras temáticas mais tradicionais foram se eclipsando. Na primeira metade deste século, por exemplo, declinaram as biografias de grandes personagens históricas, embora nas últimas décadas deste mesmo século elas tenham começado a retornar de forma totalmente distinta, mostrando-se já como “biografias problematizadas” que buscam iluminar através de uma vida os aspectos mais amplos da sociedade e não meramente ilustrar a vida de um grande rei ou herói.
Acompanhando as novas tendências, os domínios da História ampliaram-se extraordinariamente para âmbitos diversos – da cultura material até as mentalidades – e mesmo o Presente foi declarado território de exploração para o historiador, com a proposta de uma “história imediata” (ou de uma “história do tempo presente”). Tornando-se mais interdisciplinar, a História incorporou as abordagens de outras disciplinas como a Antropologia, a Lingüística e a Psicanálise, ampliando ainda mais a sua disponibilidade temática. A velha história política, com suas escolhas temáticas entre o institucional e o individual de elite, com seu olhar de cima e sua perspectiva eurocêntrica, teve de ceder espaço a uma nova história com a sua miríade de novos temas, a eclipsar os antes tradicionais objetos de estudo que, agora,. teriam de esperar novas reviravoltas para recuperar algum espaço no palco historiográfico[4].
Os campos temáticos da historiografia, como se vê, vêm e vão de acordo com as próprias flutuações histórico-sociais e em sintonia com as mudanças de paradigmas historiográficos. Com tudo isto, pretendemos dar a perceber que os temas e problemas selecionados para pesquisas históricas não constituem inteiramente uma escolha dos historiadores. A Sociedade, a Instituição e a comunidade de historiadores na qual eles se inscrevem exercem o seu papel de criar um universo de temáticas possíveis a partir das quais os historiadores fazem as suas escolhas. Dizer que estas escolhas são inteiramente livres seria uma quimera. A historiografia, tal como já assinalou de maneira bastante pertinente Michel de Certeau, inscreve-se em um “lugar de produção” bem definido[5].
É claro que compete aos historiadores inovar e propor novos temas e problemas para as suas pesquisas históricas. Mas é somente a custa de muitas resistências vencidas que os temas radicalmente inovadores passam a ser tolerados e respeitados, antes de passarem a compor com outros o repertório de temas historiográficos possíveis ou até de se tornarem a moda do momento. Em se tratando de pesquisas históricas realizadas dentro de instituições acadêmicas, ou mais especificamente das teses de mestrado ou doutorado, temos de reconhecer que a margem de escolha para os pesquisadores de História é freqüentemente ainda mais restringida. Por vezes, estes têm de se adequar às linhas de pesquisa* ou áreas de concentração da Instituição em que pretendem se inserir. Uma vez aceitos, terão de buscar um orientador e negociar com este o tema proposto. Não raro o orientador manifestará o interesse de que o orientando se encaixe em um Projeto maior que está coordenando, ou de que o orientando se sintonize com outros temas que já se encontram sob sua orientação. O interesse do orientador também é um dado legítimo, se quisermos falar mais francamente, e este dado passa a interagir de um modo ou de outro com o interesse mais específico do orientando.
Uma solução para o pesquisador que já possui um interesse temático muito bem estabelecido, e que pretende ingressar em um Programa de Pós-Graduação, é investigar previamente qual a Instituição e quais os orientadores desta Instituição que melhor se sintonizarão com os seus objetivos. Esta será uma boa estratégia para diminuir a margem de conflitos, embora em uma certa medida os conflitos sejam inevitáveis e até desejáveis. Lidar habilmente com os conflitos de interesse que orbitam na relação ‘Orientador / Orientando / Instituição’ pode mesmo contribuir para enriquecer um tema, e não necessariamente para despedaçá-lo.
Notas:
[1]Benedetto CROCE, Teoria e storia della storiografia, Bari: Laterza & Figli, 1943. Lucien FEBVRE, Combates pela História. S. Paulo: Ed. UNESP, 1992.
[1]Benedetto CROCE, Teoria e storia della storiografia, Bari: Laterza & Figli, 1943. Lucien FEBVRE, Combates pela História. S. Paulo: Ed. UNESP, 1992.
[3] Roberto DA MATTA. Relativizando – uma introdução à antropologia social. Rio de Janeiro: Rocco, 2000 (6a Edição). p.128.
[4] Só nas últimas décadas do século XX começam a retornar, por exemplo, as possibilidades de um historiador tomar para objeto de estudo uma grande batalha, como foi o caso da Batalha de Bouvines, de Georges Duby. E as biografias de grandes personagens, depois de um longo ostracismo, também retornam em obras como o São Luís e o São Francisco de Assis de Jacques Le Goff e com o Eleito de Deus (Oliver Cromwell) de Christopher Hill. Quanto às biografias problematizadas de Lucien Febvre – sobre Lutero, Rabelais e Erasmo – foram exceções na primeira geração dos Annales, uma espécie de caminho prenunciado mas deixado a percorrer por gerações bem posteriores.
[5] Michel de CERTEAU. “A operação histórica” In A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense, 1982. p.31-64 e p.65-119.
QUAL É A RELAÇÃO ENTRE ASSUNTO E RECORTE TEMÁTICO?
ResponderExcluirn tem nd mais resumido ai n
ResponderExcluir