Iniciar uma Pesquisa, em qualquer campo do conhecimento humano, é partir para uma viagem instigante e desafiadora. Mas trata-se decerto de uma viagem diferente, na qual já não se pode contar com um caminho preexistente que bastará ser percorrido após a decisão de partir. Se qualquer viagem traz consigo uma sensação de novidade e de confronto com o desconhecido, a viagem do conhecimento depara-se adicionalmente com a inédita realidade de que o caminho da Pesquisa deve ser construído a cada momento pelo próprio pesquisador. Até mesmo a escolha do lugar a ser alcançado ou visitado não é mera questão de apontar o dedo para um ponto do mapa, pois este lugar deve ser também ele mesmo construído a partir da imaginação e da criatividade do investigador.
Delimitado o tema, o problema a ser investigado, ou os objetivos a serem atingidos, o pesquisador deverá em seguida produzir ou constituir os seus próprios materiais – pois não os encontrará prontos em uma agência de viagens ou em uma loja de artigos apropriados para a ocasião – e isto inclui desde os instrumentos necessários à empreitada até os modos de utilizá-los. É assim que, se qualquer viagem necessita de um cuidadoso planejamento – de um roteiro que estabeleça as etapas a serem cumpridas e que administre os recursos e o tempo disponível – mais ainda a viagem da Pesquisa Científica necessitará deste instrumento de planejamento, que neste caso também será um instrumento de elaboração dos próprios materiais de que se servirá o viajante na sua aventura em busca da construção do conhecimento. Este é o papel do Projeto na Pesquisa Científica.
O Projeto de Pesquisa deve ser, naturalmente, um instrumento flexível, pronto a ser ele mesmo reconstruído ao longo do próprio caminho empreendido pelo pesquisador. Se o conhecimento é produto da permanente interação entre o pesquisador e o seu objeto de estudo, como tende a ser considerado nos dias de hoje, as mudanças de direção podem ocorrer com alguma freqüência, à medida que esta interação se processa e modifica não apenas o objeto de estudo, mas o próprio estudioso.
Ao se deparar com novas fontes, ao imaginar novas hipóteses, ao se confrontar com as inevitáveis dificuldades, ao produzir novos vislumbres de caminhos possíveis, ou ao amadurecer no decorrer do próprio processo de pesquisa, o investigador deverá estar preparado para lidar com mudanças, para abandonar roteiros, para antecipar ou retardar etapas, para se desfazer de um instrumento de pesquisa em favor do outro, para repensar as esquematizações teóricas que até ali haviam orientado o seu pensamento. Neste sentido, todo Projeto é provisório, sujeito a mutações, inacabado.
Diante deste caráter provisório e inacabado do Projeto, o pesquisador iniciante freqüentemente se vê tentado a supor que elaborar um Projeto é mera perda tempo, e que melhor seria iniciar logo a pesquisa. Da mesma forma, o estudioso que acaba de ingressar em um Programa de Mestrado não raro se põe a perguntar se não seria mais adequado começar já a escrever os capítulos de sua dissertação, à medida que vai levantando e analisando os seus materiais (como na História ou na Sociologia), ou à medida que vai realizando os seus experimentos (neste último caso, considerando ciências como a Física ou a Química). Se ele passa a elaborar o seu Projeto, a contragosto, é porque se acha obrigado a isto institucionalmente, uma vez que deverá defendê-lo a certa altura do seu curso em um evento que nas universidades brasileiras chama-se “exame de qualificação”.
Já com relação ao pesquisador que participa de um Programa de Pós-Graduação em nível de Doutorado, este, na maior parte dos casos, já deve ter elaborado o seu Projeto antes de ter ingressado no Programa – e neste caso o Projeto terá assumido para ele, para além do papel de uma exigência institucional, a função de uma “carta de intenções” a partir da qual ele procurou convencer a banca examinadora de que era um candidato interessante para o Programa.
Por outro lado, para além dos ambientes acadêmicos e universitários, com freqüência uma pesquisa é proposta pelo seu executante para ser financiada por organizações nacionais e internacionais, por institutos e órgãos de fomento à pesquisa, e também por empresas da caráter privado ou estatal. Os professores que atuam nos meios universitários também devem, na maior parte das vezes, registrar as pesquisas que estão realizando como parte de suas atividades docentes. Em todos estes casos, a elaboração do Projeto de Pesquisa se apresenta novamente como uma exigência necessária, e a incapacidade de atender esta exigência de maneira minimamente satisfatória pode implicar na perda de oportunidades profissionais importantes.
Em que pesem estes aspectos institucionais de que se possa ver revestido, um Projeto de Pesquisa é na verdade muito mais do que isto. Assim, contrariamente à falsa idéia de que o Projeto é meramente uma exigência formal e burocrática, ou de que se constitui apenas naquele recurso necessário para a Instituição selecionar candidatos a pesquisadores ou avaliar o seu desempenho, o estudioso mais amadurecido sabe que o Projeto é efetivamente uma necessidade da própria pesquisa. Sem o Projeto, ele sabe que a sua viagem se transformará em uma caminhada a ermo, que os recursos em pouco tempo estarão esgotados por falta de planejamento, e que os próprios instrumentos necessários para iniciar a caminhada, para dar um passo depois do outro, sequer chegarão a ser elaborados.
Sem o Projeto, o pesquisador mais experiente sabe que não existe sequer um caminho, uma vez que este caminho deve ser construído gradualmente a partir de materiais elaborados pelo próprio pesquisador - sendo a elaboração do Projeto simultaneamente o primeiro passo da caminhada e o primeiro instrumento necessário para se pôr a caminho. O Projeto de Pesquisa, desta maneira, mostra-se a este pesquisador precisamente um ganho de tempo, um agilizador da pesquisa, um eficaz roteiro direcionador, um esquema prévio para a construção dos materiais e técnicas que serão necessários para alcançar os objetivos pretendidos.
O “Quadro 1” [consultar no artigo em referência] procura resumir algumas das principais funções de um Projeto de Pesquisa. Ali encontraremos as já mencionadas funções formais ou burocráticas, que os pesquisadores iniciantes confundem com a única razão de ser do Projeto, mas também as funções operacionais, que são inerentes à própria realização de uma Pesquisa em si mesma. Assim, se o Projeto é uma “carta de intenções” (1) onde o pesquisador exibe a sua proposta investigativa para uma instituição acadêmica ou científica, e se ele é um “item curricular” nas instituições de Pós-Graduação (2), o Projeto é também um poderoso instrumento que cumpre as funções de “direcionador da pesquisa” (3).
Neste último aspecto em particular, o pesquisador que pretenda iniciar sem um Projeto a sua viagem de construção do conhecimento cedo perceberá que o próprio tema lhe parece fugir constantemente. Facilmente o pesquisador pode se por a perder em uma floresta temática, que lhe oferece mil direções e possibilidades, até que perceba que, dentro de um tema mais amplo, é preciso recortar, criar um problema, estabelecer uma direção, e que o Projeto vai lhe permitir precisamente a efetivação destes múltiplos recortes que tornarão a sua pesquisa possível, viável e relevante.
Esta constituição gradual e sistemática de um objeto de pesquisa não necessita apenas de uma direção e de um recorte delimitador, mas também de um planejamento. Aqui o Projeto vem trazer outra contribuição, uma vez que em uma de suas instâncias ele se constitui em um “roteiro de trabalho” ou em um instrumento de planejamento (4) sem o qual o pesquisador desperdiçaria os seus recursos, perdendo-se em uma investigação não sistematizada para ficar a meio caminho dos objetivos que sequer chegou a explicitar de maneira mais clara para si mesmo.
Sobretudo, o Projeto é um eficaz “instrumento para elaboração de idéias” e para auto-esclarecimento de quem o produz (5). Ao elaborar um quadro teórico ou a pensar metodologias, ao construir hipóteses e fixar objetivos, ao empreender uma revisão bibliográfica que colocará o pesquisador diante da literatura já existente sobre o assunto, o Projeto vai gradualmente esclarecendo aquele que o produz, dando-lhe elementos para articular melhor as suas idéias e confrontá-las com o que já foi feito naquele campo de conhecimento.
Mais ainda, o Projeto permite que a pesquisa em andamento seja exposta aos olhares de outros pesquisadores, sejam professores e profissionais mais experientes que incluem o orientador da dissertação ou da tese, sejam os colegas de mesmo nível, também capazes de contribuir significativamente para uma pesquisa que, sabe-se muito bem, nunca é um trabalho exclusivamente individual. O Projeto torna-se desta maneira um instrumento para o “diálogo científico e acadêmico” (6).
Alguns destes diálogos, em se tratando das pesquisas de Pós-Graduação, encontram precisamente o seu lugar nos momentos em que o pesquisador expõe o seu Projeto a professores e colegas nos vários seminários que habitualmente constituem parte dos itens curriculares de um curso de Mestrado ou de Doutorado. O próprio “Exame de Qualificação” é precisamente um momento maior nesta rede permanente de diálogos ¾ um momento algo ritualizado em que o pesquisador apresenta o seu trabalho a alguns professores para receber críticas e sugestões que o ajudarão a aperfeiçoar o seu trabalho e a encontrar novos caminhos.
O Projeto cumpre, desta forma, oferecer o “retrato de uma pesquisa em andamento” (7). Neste momento, em se tratando de uma pesquisa que visa a elaboração de uma Dissertação de Mestrado, é lícito chamar o projeto de “Projeto de Dissertação” (ao invés de “Projeto de Pesquisa”, expressão que implicaria em uma investigação que ainda está por se realizar ou que, no máximo, anunciaria procedimentos ainda exploratórios). No caso de um “Projeto de Dissertação”, que o estudante de mestrado apresenta já na metade do seu curso, a Pesquisa já deve se encontrar em estágio mais avançado e definido, e daí a pertinência desta mudança de designação.
Neste caso particular, é também aconselhável acrescentar ao Projeto um “Plano de Capítulos”, onde devem estar sumariados, de maneira sintética e preliminar, os capítulos pretendidos para o texto final da Dissertação de Mestrado ou da Tese. Em tempo: este “plano de capítulos” é também provisório, sujeito a mudanças e redefinições, e as próprias sugestões recebidas pela banca examinadora podem contribuir para este redirecionamento que poderá conduzir a uma nova organização de capítulos.
Leia a continuação deste artigo em: http://ning.it/dKbJeK
[BARROS,José D'Assunção. "O Projeto de Pesquisa - aspectos introdutórios” in Travessias – Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). vol.2, janeiro-julho de 2008, artigo.19].
O artigo baseia-se no primeiro capítulo do livro 'O Projeto de Pesquisa em História', que foi editado pela Editora Vozes em 2005, e que está, em 2011, chegando à sua 7a edição. Quem estiver interessado em conhecer a obra, peça ao e-mail. jose.assun@globo.com]
[BARROS, José D'Assunção. O Projeto de Pesquisa em História. Petrópolis: Editora Vozes, 2011, 7a edição]
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