Neste texto, vamos compreender a possibilidade de utilizarmos hipóteses na História (ou nas ciências humanas, de modo geral) a partir de um exemplo mais específico.
Na História da Conquista da América, um dos problemas mais intrigantes e fascinantes que têm sido enfrentados pelos historiadores é o de tentar entender como impérios tão bem organizados como o dos astecas e o dos incas, habitados por milhões de nativos, foram derrotados nas primeiras décadas do século XVI por apenas algumas centenas de soldados espanhóis em tão curto espaço de tempo e com tão aparente facilidade .
As hipóteses que têm sido propostas como respostas possíveis a este problema são muitas, “indo desde a inferioridade do armamento indígena (Las Casas), até as divisões políticas no interior desses impérios (Bernal Díaz, Cieza de León); desde os erros de estratégia militar apontados para explicar a derrota de Atahualpa em Cajamarca (Oviedo), até as sofisticadas explicações dos estudiosos modernos que consideram a derrota dos índios como conseqüência de sua incapacidade de decodificar os signos dos conquistadores (Todorov)” (BRUIT, 1994: 18).
Vamos retomar este problema da História da América, pois ele nos ajudará a entender a importância das hipóteses para acondução de uma pesquisa, e também a entender - já no âmbito mais específico da historiografia - o que é propriamente uma hipótese.
Perguntaremo-nos pelo fator ou pela combinação de fatores que teriam favorecido este acontecimento, tão significativo para o destino subseqüente do continente americano. Nesta formulação, o Problema apresentado ocupará a primeira parte do enunciado, enquanto a parte subsequente, depois das reticências, deverá ser preenchida pela redação pertinente a cada uma das diversas hipóteses que se apresentam como soluções satisfatórias para a questão imaginada, ou ao menos como caminhos de investigação possíveis. Pensemos neste conjunto formad por um problema específico, e pelas suas possíveis hipóteses, a partir do seguinte esquema visual:
Quadro 1: Um problema e suas hipóteses
Basta substituir o segundo termo (depois das reticências ...) por qualquer das alternativas propostas, ou por uma combinação de duas ou três das alternativas propostas, e teremos diversas possibilidades para o mesmo problema. O círculo à esquerda enquadra o problema proposto, que é também a primeira parte de uma hipótese a ser redigida. À direita, são apresentadas algumas respostas possíveis para o problema, que constituem a segunda parte da redação proposta para a Hipótese a ser formulada. Assim, uma das várias hipóteses indicadas no esquema (a célebre hipótese de Todorov, no livro "A Conquista da América") poderia ser redigida da seguinte forma:
"a sujeição de milhões de nativos meso-americanos, organizados em impérios centralizados e desenvolvidos como o dos astecas, em curto espaço de tempo e para apenas algumas centenas de soldados espanhóis, ... deveu-se fundamentalmente à dificuldade dos astecas em lidar com a alteridade e com o choque cultural produzido pelo seu contato com os conquistadores."
Em diversas ocasiões uma hipótese apresenta este tipo de formato redacional, particularmente as que buscam compreender as relações entre um acontecimento ou fenômeno e os fatores dominantes que o tornaram possível. O próprio problema pode aparecer neste caso como o primeiro termo da hipótese, e a solução provisória ou resposta antecipada pode corresponder ao termo subseqüente. Por ora, o aspecto importante a ressaltar – com relação à exemplificação que propomos – é que inúmeros historiadores têm proposto para o problema da Conquista da América diversas hipóteses, como estas ou outras, e, ainda mais freqüentemente, combinações de hipóteses que buscariam dar uma explicação complexa ou multifatorial para o problema formulado. Para sustentar as hipóteses propostas, estes historiadores têm desenvolvido argumentações diversificadas, apoiando-se em fontes diversas, analisando-as com metodologias variadas, e abordando o problema a partir de quadros teóricos específicos.
A bem dizer, a formulação de hipóteses explicativas diversas para o processo da Conquista da América começou a ocorrer já desde a época dos próprios acontecimentos. Bernal Diaz, que acompanhou a expedição de Cortês, dá o ponto de partida nas hipóteses que procuram explicar o sucesso da Conquista em termos de uma extrema habilidade e coragem dos conquistadores espanhóis, o que é compreensível, uma vez que este historiador e participante da expedição não poderia senão defender o ponto de vista dos conquistadores espanhóis. Bem mais tarde, no século XIX, veremos ressurgir vigorosamente esta hipótese que buscava essencialmente enaltecer os conquistadores, particularmente com o setor da historiografia que ficou conhecido como responsável por produzir uma “História dos Grandes Homens” – essa história na qual os grandes personagens históricos eram os principais responsáveis pelos acontecimentos. Assim, William Prescott, um historiador que escreve sobre a Conquista da América em 1843 (PRESCOTT, 1909), iria atribuir o sucesso da empresa da Conquista da América às façanhas de Cortês e de seus homens, e mesmo no século XX, quando ocorreria uma crítica contumaz à História dos Grandes Homens, esta hipótese ainda estaria sendo reformulada algumas vezes .
Já a hipótese da ‘superioridade bélica’ (2) – que em alguma medida deve entrar em qualquer análise sobre a Conquista da América – não poderia rigorosamente, sozinha, explicar a rapidez do processo e a intensidade da devastação, e nem tampouco o fato contundente de que os espanhóis tiveram de enfrentar uma descomunal desproporção diante de milhões de astecas contra apenas algumas centenas de soldados espanhóis. Essa hipótese, importante mas não suficiente, dificilmente pode ser convincente quando não articulada a outras, como por exemplo a hipótese indicada com o número ‘4’, e que postula que ‘divisões políticas no interior das sociedades astecas favoreceram ou foram exploradas habilmente pelos espanhóis’.
Aliás, existem nuances possíveis dentro desta mesma hipótese. Quando se diz que os espanhóis souberam explorar as divisões existentes nas sociedades mexicanas e as rivalidades recíprocas entre alguns povos da região, coloca-se os conquistadores espanhóis no centro do palco, como atores principais, e escreve-se uma história do ponto de vista europeu . Quando se propõe que havia previamente uma guerra civil indígena que enfraquece o império asteca, e que daí surgem condições para os espanhóis impingirem sua dominação, desloca-se o conquistador espanhol para uma espécie de papel coadjuvante, e faz-se dos astecas e seus inimigos indígenas os atores centrais da trama. A história é contada do ponto de vista asteca, e a chegada dos espanhóis entra como um acontecimento externo, e não o contrário .
Existe ainda a célebre hipótese de Todorov sobre o choque cultural, que, embora impactante para as duas civilizações que se encontraram no confronto entre espanhóis e astecas, teria favorecido no fim das contas os espanhóis. Afinal, os astecas, até o momento da chegada dos espanhóis à América, não conheciam senão povos relativamente parecidos com eles mesmos. Já os espanhóis, àquela altura de sua história, já conheciam populações muito distintas das populações européias, como as asiáticas, africanas, islâmicas. Os espanhóis, por assim dizer, tinham uma inegável experiência maior com a alteridade.
É preciso acrescentar ainda que um historiador não precisa se ater a uma única hipótese sobre determinado processo. Ele pode combinar um certo conjunto possível de hipóteses. Por exemplo, um historiador poderia postular que o que conduziu o processo da Conquista a se dar tal como se deu foi uma combinação de fatores: a superioridade bélica,o choque cultural, e a exploração espanhola da diversidade asteca. Um historiaDOR pode combinar duas, três, quatro ou mais hipóteses na sua interpretação de determinado processo histórico. isso amplia ainda mais o universo de alternativas hipotéticas em um caso como este que estamos investigando.
Com relação à temática trazida a exemplo, possivelmente, nunca se chegará a uma explicação sobre a Conquista da América que seja considerada mais pertinente do que todas as outras. Na verdade, a elaboração do conhecimento histórico consiste precisamente neste permanente re-exame do passado com base em determinadas fontes e a partir de determinados pontos de vista. As hipóteses na História ou nas Ciências Sociais dificilmente podem adquirir a aparência de verdades absolutas (se é que existem verdades deste tipo), porque há um espaço muito evidente de interpretação a ser preenchido pelo historiador ou pelo sociólogo na sua reflexão sobre problemas sociais do presente ou do passado. Em tempo: o que pode ser confirmado como afirmações indiscutíveis são determinados dados ou enunciados empíricos, mas não as proposições problematizadas que relacionam ou interpretam estes dados empíricos. Por isto mesmo, podemos dizer que a História corresponde a um conhecimento. interpretativo.
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Para ler o texto completo sobre "O Uso de Hipóteses nas Ciências Humanas", acesse
http://ning.it/grnXjG
[BARROS, José D'Assunção. “As Hipóteses nas Ciências Humanas – considerações sobre a natureza, funções e usos das hipóteses” in Sísifo (Revista de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa). 2008. n°7, p.151-162. http://ning.it/grnXjG
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BARROS, José D'Assunção. O Projeto de Pesquisa em História. Petrópolis: Editora Vozes, 2011, 7a edição.
BRUIT, Hector. O Trauma de uma Conquista Anunciada. In GEBRAN, P. e LEMOS M. T. (orgs.) América Latina: Cultura, Estado e Sociedade. Rio de Janeiro: ANPHLAC, 1994.
PRESCOTT, W. Conquest of México. Londres: Dent, 1909.
TODOROV, T. A Conquista da América – a questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
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