sábado, 29 de janeiro de 2011

Fonte Histórica (3) Dimensões envolvidas na análise qualitativa do texto

[o presente texto foi extraído do livro "O Campo da História"]


No último texto, vimos que, nos dias de hoje, tudo pode ser fonte histórica. Para muito além da documentação escrita, os historiadores contemporâneos aprenderam a lidar com fontes imagéticas, fontes materiais, fontes imateriais, fontes orais, ou mais o que s possa imaginar para além do suporte escrito.

Isso não quer dizer,todavia, que tenha decrescido o uso de fontes escritas pelos historiadores. Se outros suportes que não o escrito passaram a ser considerados pelos historiadores como fontes diretas para os seus estudos, o fato é que ainda hoje o historiador vê se ampliarem cada vez mais as oportunidades para trabalhar com os ‘textos escritos’. Ou seja, se a historiografia do século XX ampliou o seu conceito de fonte histórica para um mundo não-textual de possibilidades, também ampliou extraordinariamente os tipos de documentação escrita com as quais irá lidar. Não mais apenas as fontes institucionais e diplomáticas ou as crônicas oficiais que praticamente ocupavam todas as expectativas do historiadores do século XIX; hoje qualquer texto pode ser constituído pelo historiador como fonte: o diário de uma jovem desconhecida, uma obra da alta literatura ou da literatura de cordel, as atas de reunião de um clube, as notícias de jornal, as propagandas de uma revista, as letras de música, ou até mesmo uma simples receita de bolo. Não há mais limites para os tipos de textos que podem servir como materiais para o historiador.

Houve uma mudança na postura do historiador para com estes textos. Se antes os textos eram quase que exclusivamente utilizados como ‘testemunhos’ dos quais os historiadores do século XIX procuravam extrair informações mais ou menos diretas (na maior parte dos casos de uma maneira ingênua que associava o documento histórico à idéia de “prova”), hoje as fontes textuais são também utilizadas como ‘discursos’ a serem decifrados em si mesmos. Relembrar, ainda uma vez, o que vem a ser a ‘fonte histórica’, pode ajudar a iluminar melhor esta distinção entre “testemunho” e “discurso”.

A fonte histórica, já o dissemos, é aquilo que coloca o historiador diretamente em contato com o seu problema. Ela é precisamente o material através do qual o historiador examina ou analisa uma sociedade humana no tempo, ou um processo histórico na dinâmica do seu devir. Uma fonte pode preencher uma das duas funções acima explicitadas: ou ela é o meio de acesso àqueles fatos históricos que o historiador deverá reconstruir e interpretar (fonte histórica = fonte de informações sobre o passado), ou ela mesma ... é o próprio fato histórico. Vale dizer, neste último caso considera-se que o texto que se está tomando naquele momento como fonte é já aquilo que deve ser analisado, enquanto discurso de época a ser decifrado, a ser compreendido, a ser questionado. É neste sentido que diremos que a fonte pode ser vista como ‘testemunho’ de uma época e como ‘discurso’ produzido em uma época.

A historiografia, ao superar o positivismo ingênuo do século XIX, foi tendendo a valorizar cada vez mais esta dimensão da fonte histórica textual como ‘discurso’. Hoje, poderíamos dizer que a maior parte das práticas historiográficas insere-se em uma História do Discurso (ou, se quisermos, uma História Textual). Um discurso qualquer pode ser analisado tanto a partir de uma ‘abordagem qualitativa’ como a partir de abordagens 'quantitativas’, 'topológicas', ‘seriais’, considerandoque estas últimas examinam documentos reunidos em série. Falaremos das abordagens ‘serial’ e ‘quantitativa’ em outra oportunidade. Por ora, reflitamos sobre as possibilidades qualitativas de um texto.

Um texto pode ser abordado qualitativamente de muitas maneiras. Os historiadores, os críticos literários, os lingüistas, os psicanalistas, e quaisquer outros profissionais que dependam da interpretação de textos para o seu ofício (como é o caso também dos advogados e dos investigadores de polícia) não cessam de inventar novos modos de trabalhar sobre o texto, avançando para muito além daquilo que se encontra aparentemente exposto em sua superfície. As abordagens semióticas, por exemplo, hoje utilizadas por vários historiadores, enriqueceram muito as possibilidades de fazer um texto falar sobre coisas que o próprio autor do texto não pretendia dizer. Quando alguém utiliza determinadas expressões e palavras, já está dizendo algo ao bom analista de textos, independente dos sentidos que ele pretenda atribuir às palavras. A presença de certas imagens em um discurso, a recorrência de determinadas palavras, a maneira de organizar uma narrativa, as referências intertextuais (a outros textos) - sejam estas voluntárias, explícitas, implícitas ou involuntárias - tudo isto fala por si mesmo independente do ser falante que pronuncia o discurso.

Isto, sem levar em consideração a possibilidade de contrapor textos diferenciados, de pôr as várias versões a respeito de um acontecimento a se iluminarem ou a se contradizerem reciprocamente. Estas contradições, veremos mais adiante, podem ser de grande valia para um historiador. Sem contar que as contradições existem internamente a um mesmo texto, trazendo à tona o caráter polifônico de certos discursos.

A riqueza de qualquer texto está no fato de que ele é simultaneamente um ‘objeto de significação’ e um ‘objeto de comunicação cultural entre sujeitos’. Estes dois aspectos na verdade se complementam: se por um lado o texto pode ser definido pela organização ou estruturação que faz dele uma “totalidade de sentido”, por outro lado ele pode ser definido como um objeto de comunicação que se estabelece entre um destinador e um destinatário (ou entre um destinador e muitos destinatários).

A tentativa de avaliar o texto na sua primeira dimensão, a de ‘objeto de significação’, gera a análise interna ou estrutural do texto (que pode ser empreendida por aportes teóricos e metodológicos diferenciados, sendo a semiótica uma destas possibilidades). Já a avaliação do texto como ‘objeto de comunicação’ implica na análise do contexto histórico-social que o envolve e que, de alguma maneira, atribui-lhe sentido. Neste caso, empreende-se a análise externa do texto, que também pode ser concretizada através de diferenciados aportes teóricos e metodológicos. Ainda com relação à sua análise externa, o texto também pode ser exa-minado do ponto de vista das intenções ou das motivações pessoais do autor que o produziu, ou daqueles que dele se apropriam imputando-lhe novos sentidos. A perspectiva mais útil para a História é considerar mesmo o texto a partir da dualidade que o define enquanto ‘objeto de significação’ e ‘objeto de comunicação’.

De acordo com esta visão complexa e multidimensional do texto, que postularemos ser a mais adequada para o historiador, pode-se dizer que a análise de um discurso deve contemplar simultaneamente três dimensões fundamentais: o intratexto, o intertexto e o contexto. O ‘intratexto’ corresponde aos aspectos internos do texto e implica exclusivamente na avaliação do texto como objeto de significação; o ‘intertexto’ refere-se ao relacionamento de um texto com outros textos; e o contexto corresponde à relação do texto com a realidade que o produziu e que o envolve. São precisamente estas duas últimas dimensões que exigem que o texto, além de ser tratado como um objeto de significação em si mesmo, seja considerado também como objeto de comunicação.

A visão do texto a partir da tríplice abordagem do intratexto, do intertexto e do contexto é inegavelmente a mais rica para um historiador que pretende utilizar o discurso textual como fonte. Por outro lado, autores como Roland Barthes consideram o texto como um sistema auto-suficiente de signos cujo significado provém de suas interrelações, e não de fatores externos como a ‘intenção do autor’ ou o seu ‘contexto de produção’. Assim, para a perspectiva estruturalista de Roland Barthes as palavras, símbolos e imagens em interação criam sistemas de significados que repetem a estrutura da linguagem e refletem as funções sociais da mitologia. O resultado disto é que o texto poderia ser analisado sem um recolocação na sociedade que o produziu ou que o consome. Ou, dito de outra forma, a análise restringe-se neste caso apenas ao plano do intratexto.

Em que pesem as contribuições que o historiador possa extrair deste tipo de semiótica estruturalista que procura examinar o texto em si mesmo, desprezando as referências externas, a verdade é que sempre será muito importante para um historiador “contextualizar” o texto com o qual está trabalhando. Todo texto é produzido em um lugar que é definido não apenas por um autor, pelo seu estilo e pela história de vida deste autor, mas principalmente por uma sociedade que o envolve, pelas dimensões desta sociedade que penetram no autor, e através dele no texto, sem que disto ele se aperceba. Uma época, uma sociedade, um ambiente social (rural, urbano), uma Instituição, uma rede de outros textos às quais o autor deverá se conformar, as regras de uma determinada prática discursiva ou literária, as características do gênero literário em que se inscreve o texto: tudo isto constrange o autor que escreve o texto, deixando nele suas marcas a princípio indeléveis, mas que devem ser pacientemente decifradas pelos historiadores e outros analistas de textos.

Além de um lugar de produção, todo texto tem também um destino. Pode ser, por exemplo, um determinado receptor ou grupo de receptores (os leitores de um jornal ou de uma obra literária, a população que é comunicada acerca das decisões régias através de um edito). O receptor, mesmo que o autor ou produtor do texto não esteja plenamente consciente disto, ajuda também a escrever o texto. Quem escreve um texto acaba sem querer antecipando certas expectativas de quem irá recebê-lo, seja para contemplá-las ou para afrontá-las. Qualquer texto visa um receptor (ou um “lugar de recepção”), porque ele tem uma “intenção” (uma mensagem que quer ser transmitida ou uma informação a ser registrada).

É verdade que, em alguns casos, o texto não é produzido originalmente com vistas propriamente a um receptor, mas sim para contemplar determinada finalidade. Uma canção quer chegar a um público, um Edito quer chegar a um súdito, uma carta quer atingir um interlocutor ... mas os documentos cartoriais e paroquiais, a princípio, pretendem apenas registrar certas informações que serão necessárias oportunamente, ou para as autoridades que controlam uma população, ou para os próprios indivíduos aos quais se referem estes documentos. O historiador pode lidar tanto com textos que visam ‘receptores’, como com textos que buscam cumprir determinadas ‘finalidades’.

Grosso modo, pelo que pudemos ver até aqui, o triângulo da comunicação em que se insere todo texto tem estes três vértices: um lugar de produção, um conteúdo (intenção, mensagem), um lugar de recepção (ou de destino). O historiador deve lidar habilmente com cada um destes vértices e com a sua interação (porque cada um deles se inscreve no outro, no sentido, por exemplo, de que o produtor do texto antecipa certas expectativas do seu receptor).

A isto poderemos acrescentar uma outra dimensão que é a da ‘intertextualidade’, a que já nos referimos anteriormente. Qualquer texto insere-se em uma rede de semiose, em uma rede de textos da qual ele extrai um pouco do seu sentido. Já fizemos notar que o próprio ‘gênero’ no qual se enquadra um texto (edito, crônica, poesia, norma jurídica) já estabelece automaticamente um primeiro nível de intertextualidade (o texto irá dialogar, quer queira o autor ou não, com as normas literárias e com o repertório de possibilidades que regem aquele gênero, mesmo que em alguns casos o autor pretenda afrontá-los). Depois aparecem as demais intertextualidades: o autor irá se referir explicita ou implicitamente a outros textos, e existirão também os textos que, mesmo sem o conhecimento do autor, estarão inscritos no seu discurso.

A questão da intertextualidade é naturalmente bastante complexa, uma vez que ela pode aparecer tanto no texto que o historiador se põe a analisar (as intertextualidades explícitas e implícitas inerentes à construção textual do autor do documento estudado) como também na própria análise do historiador, que na sua leitura do documento estabelece intertextualidades em diversos níveis. É por isso que Eliseo Verón, em um livro intitulado "A Produção do Sentido" (1979), escreve que “não se analisa jamais um texto: analisa-se pelo menos dois, quer se trate de um segundo texto escolhido explicitamente para a comparação, quer se trate de um texto implícito, virtual, introduzido pelo analista, muitas vezes sem que ele o saiba” .

A história da historiografia inscreve-se em um gradual aprendizado do historiador diante dos textos com os quais ele deverá lidar. Muito aconteceu desde as primeiras aproximações positivistas e historicistas, especialmente preocupadas com as críticas interna e externa do texto, mas ainda ingênuas no tratamento do discurso. A Psicanálise, a Lingüística, a Semiótica e as teorias da Comunicação revolucionaram as possibilidades de interpretar um texto, e destas revoluções o historiador de hoje se vale.

Como já se deve ter percebido, não existe certamente uma técnica única que possa ser aplicada à análise de texto para todos os casos. O primeiro contato do historiador com a sua fonte textual consiste, de qualquer modo, em fazer-lhe algumas perguntas fundamentais (já se disse que o documento só fala quando o historiador faz as perguntas certas). Se, como dissemos antes, a boa análise deve abranger simultaneamente o contexto, o intertexto e o intratexto, o historiador pode começar por identificar a procedência da fonte, a sua inserção em uma sociedade mais ampla, as condições de sua produção (aspectos que, se tivéssemos de resumi-los em uma indagação primária, parecem perguntar ao texto: “de onde vens?”). Somente em seguida virão as perguntas que começam a perscrutar os caminhos internos do texto, ou a abrir as portas secretas de sua decifração. “Com quem falas”, “Do que falas?”, mas também “Sobre o que silencias?”.

O conteúdo de um texto, cedo aprende o historiador, não pode se resumir à superfície de sua mensagem. Há os entreditos, os interditos, os não-ditos, o vocabulário revelador. Se texto é falso, ou se ele mente, tanto melhor, pois o historiador poderá perguntar: “por que mentes?”. Não serão raras as vezes em que o analista irá encontrar o que procura precisamente nas contradições de um texto, seja ao nível do intratexto (as contradições internas) ou ao nível do intertexto (as contradições que aparecem no confronto com outras fontes). Ao historiador, o texto costuma falar através dos seus detalhes mais insignificantes, como um criminoso que fala através das pistas que deixa escapar descuidadamente.
.

[o presente texto foi extraído do livro "O Campo da História"]

[BARROS, José D'Assunção. O Campo da História. Petrópolis: Editora Vozes, 2011, 8a edição. p.134-140]


__________________________

Referências:

BARROS, José D'Assunção. O Campo da História. Petrópolis: Vozes, 2011, 8a edição.
BARTHES, Roland. Elementos de Semiologia. São Paulo: Cultrix, 1996.
VERÓN, Eliseu. A produção do sentido. São Paulo: Verbo, 1982

Nenhum comentário:

Postar um comentário