No último post (http://ning.it/gFw4vl), apontamos algumas questões pertinentes às pressões externas que se abatem sobre um tema de pesquisa ou que o beneficiam. Consideremos agora o que deve ser levado em conta do ponto de vista do próprio pesquisador quando da escolha de seu tema.
Antes de mais nada, o pesquisador deve perguntar a si mesmo se o tema escolhido efetivamente o interessa. Nada pior do que trabalhar em uma pesquisa com a qual não nos identificamos. Uma pesquisa sobre um tema sem interesse para o autor, apenas com vistas a assegurar um título de mestre ou de doutor (situação que tantas vezes se verifica), corre o risco de se tornar meramente burocrática, e de repassar aos futuros leitores e à banca que examinará a tese a mesma sensação de enfado que assaltou o seu autor durante a sua realização. O destino de uma tese como esta é um arquivo que jamais será consultado pelos olhares interessados dos futuros pesquisadores, e que somente será lembrada pelo seu próprio autor como uma tarefa penosa que teve de cumprir um dia para conquistar uma pequena promoção acadêmica ou salarial.
É necessário, portanto, investir em um interesse efetivo quando se busca uma temática para iniciar uma pesquisa – interesse que, trazendo as marcas subjetivas que afetam diferentemente cada pesquisador, pode estar motivado tanto por uma simples curiosidade intelectual como pela intenção mais altruísta de fazer avançar o conhecimento científico.
Já o aspecto da relevância do tema escolhido é sempre uma questão delicada. Será relevante escrever uma tese sobre a minha pequena cidade natal, apenas para preencher motivações afetivas que provavelmente me chegam dos tempos de criança? Não seria melhor me dedicar a um assunto de interesse nacional, que correspondesse a um maior número de interesses entre os meus possíveis leitores? Ou, pensando bem, a tese sobre a pequena cidade em que nasci não poderia se converter em um excelente exercício de micro-história para compreender a sociedade mais ampla e acessar outras realidades similares?
Procurar indagar sobre que interesse uma certa pesquisa poderá ter para a sociedade corresponde sempre a uma reflexão legítima. Tal como já foi mencionado, a relevância que um autor atribui ao seu próprio trabalho tende a interagir com os critérios de relevância que lhes chegam através da sociedade ou da Instituição, ou ainda através do conjunto de opiniões que o alcançam a partir de seus pares historiadores sob a forma de comentários e intertextualidades diversas. De qualquer maneira, o que não se pode é classificar uma pesquisa alheia como “irrelevante” apenas com base nos critérios que nós mesmos resolvemos adotar. Já se disse que “nada do que é humano é alheio ao historiador”. Dentro dos limites generosos do “tudo é história”, o pesquisador deve se esforçar por encontrar um tema que o deixe simultaneamente em paz consigo mesmo e em paz com o mundo que o cerca.
Não existem parâmetros oficiais para medir a relevância de um tema. O que existe é um consenso de que a questão da relevância deve ser constantemente refletida por aqueles que pretendem realizar um trabalho científico. Esta consciência dos aspectos que trazem relevância ao tema, aliás, também deve aparecer no Projeto de Pesquisa – merecendo um capítulo especial que chamaremos de ‘Justificativa’ e que discutiremos mais adiante.
Outro aspecto fundamental a ser considerado por ocasião da escolha do tema é a sua viabilidade. Por mais que um tema nos interesse, e por mais que o consideremos relevante, será inútil embarcar na aventura da produção de conhecimento científico se este tema não for viável. Existirá uma documentação adequada a partir da qual o tema poderá ser efetivamente explorado? Se esta documentação existe, conseguirei ter um acesso efetivo a ela? Existirão aportes teóricos já bem estabelecidos que me permitam abordar o tema com sucesso? Se não existirem, terei plena capacidade para forjar eu mesmo o instrumental teórico que me permitirá trabalhar com a temática proposta? O tema proposto requer exame de documentação escrita em língua estrangeira que não domino? Estarei plenamente capacitado para investigar este tipo de temática? Em uma palavra: o meu tema é viável? Eis uma preocupação que, com toda razão, deve pairar sobre a escolha do tema a ser investigado.
Um fantasma que costuma rondar a escolha de um tema para pesquisa é a obsessão do “ineditismo”. Com freqüência se exige das escolhas temáticas que elas sejam perpassadas por algum nível de originalidade. Não tem sentido acadêmico empreender uma pesquisa que rigorosamente já foi realizada, ou escrever uma tese que repita com mínimas variações uma tese anterior. O caráter inovador é ainda mais exigido em uma Pesquisa de Doutorado, mas também na Pesquisa de Mestrado é habitualmente solicitado.
Atente-se, porém, que a originalidade pode aparecer de diversas maneiras em uma pesquisa prevista. Um historiador pode inovar no seu tema propriamente dito, nas hipóteses propostas, nas fontes que utilizará, na metodologia a ser empregada, ou no seu aporte teórico. O seu tema já tantas vezes percorrido por outros historiadores pode merecer uma interpretação inteiramente nova, mesmo utilizando fontes já conhecidas. Assim, o pesquisador não deve deixar que o persiga obsessivamente a idéia de que é preciso encontrar um tema que ainda não tenha sido trabalhado. Tanto mais que, com uma superpopulação sempre crescente de dissertações de mestrado e teses de doutorado, os temas literalmente virgens tornam-se cada vez mais raros.
Na verdade, é sempre possível inovar – mesmo que a partir de um caminho aparentemente já percorrido. Um exemplo marcante é a obra “A Conquista da América” de Todorov[1]. Este autor conseguiu construir uma obra radicalmente inovadora a partir de um tema e de um problema que já haviam sido trabalhados inúmeras vezes por diversos historiadores, alguns dos quais utilizando as mesmas fontes das quais o escritor búlgaro lançou mão. A inovação, neste caso, esteve concentrada simultaneamente na abordagem teórica empregada e na metodologia utilizada, que incorporou as mais novas possibilidades de análise de discurso e de análises semióticas. A abordagem teórica, elaborando de maneira original conceitos como o de “alteridade”, concedeu mais um matiz de originalidade a esta obra que é hoje uma referência fundamental nos estudos históricos sobre a “Conquista da América”.
Daí pode ser extraída uma lição importante. Não é preciso necessariamente encontrar um tema novo, que não tenha sido abordado antes por outros pesquisadores. Vale também trabalhar um tema já antigo de maneira nova.
Uma derradeira questão, das mais importantes, é a que indaga por uma adequada especificidade do seu tema. O “pesquisador de primeira viagem” – marinheiro que atravessa pela primeira vez o oceano das suas possibilidades de produzir conhecimento científico – revela habitualmente a tendência a escolher temas demasiado amplos. A experiência ainda não lhe deu a oportunidade de aprender que um tema, para ser viável, deve sofrer certos recortes.
Ouçamos o que tem a dizer Umberto Eco[2] acerca desta tentação de “escrever uma tese que fale de muitas coisas” que aparece tão insistentemente entre os estudantes desavisados que iniciam suas primeiras experiências de pesquisa:
“O tema Geologia, por exemplo, é muito amplo. Vulcanologia, como ramo daquela disciplina, é também bastante abrangente. Os Vulcões do México poderiam ser tratados num exercício bom porém um tanto superficial. Limitando-se ainda mais o assunto, teríamos um estudo mais valioso: A História do Popocatepetl (que um dos companheiros de Cortez teria escalado em 1519 e que só teve uma erupção violenta em 1702). Tema mais restrito, que diz respeito a um menor número de anos, seria O Nascimento e a Morte aparente do Paricutin (de 20 de fevereiro de 1943 a 4 de março de 1952)”
Com relação a este aspecto, que nos força a uma reflexão sobre as distinções entre ‘campo de interesse’, ‘assunto’*, ‘tema’*, ‘recorte temático’* e ‘problema’*, ver texto postado anteriormente neste blog (http://ning.it/e7BKMa).
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