Outros tipos de recortes possíveis para os historiadores de hoje são o ‘recorte serial’ e o 'recorte na fonte'. Recorta-se o objeto não propriamente em função de uma determinada realidade histórico-social concernente a uma delimitação espaço-temporal preestabelecida, mas mais precisamente em função de uma determinada fonte ou série de fontes ou de materiais que é constituída precisamente pelo historiador. Vamos falar inicialmente do "recorte serial", que é aquele no qual o historiador trabalha não com fontes analisadas qualitativamente como unidades isoladas, mas sim como fontes que constituem uma "série". Este tipo de caminho historiográfico - que gerou uma modalidade denominada "História Serial" - começou a emergir a partir de meados do século XX, tendo como marco a já mencionada obra de Pierre Chaunu sobre Sevilha e o Atlântico.
Na chamada ‘História Serial’ o historiador estabelece uma “série”, e é esta série que particularmente o interessa. François Furet, em seu Atelier do Historiador[1], define a História Serial em termos da constituição do fato histórico em séries homogêneas e comparáveis. Dito de outra forma, trata-se de “serializar” o fato histórico, para medi-lo em sua repetição e variação através de um período que muitas vezes é o da longa duração. Na verdade a duração longa, ou pelo menos a média duração (relativa às conjunturas), foram as que predominaram nos primeiros trabalhos de História Serial – muito voltados nesta primeira época para a História Econômica e para a História Demográfica e combinados com a perspectiva de uma História Quantitativa. Mas, na verdade, pode-se proceder a uma serialização relacionada também a um período relativamente curto, desde que o conjunto documental estabelecido seja suficientemente denso[2].
De certo modo, as possibilidades de tratamento serial permitiram uma sensível ampliação de alternativas em termos de recorte historiográfico, uma vez que as séries singulares a serem construídas por cada historiador já não se enquadrariam nas periodizações tradicionalmente preestabelecidas. Criar uma série é, em certa medida, recriar o tempo – assumi-lo como ‘tempo construído’, e não como ‘tempo vivido’ a ser reconstituído.
Por outro lado, optar pelo caminho serial pressupõe necessariamente escolher ou construir um problema condutor muito específico – problema este que é fator fundamental na constituição da própria série. A História Serial veio assim diretamente ao encontro de uma História Problema, como as demais modalidades historiográficas que passaram a predominar na historiografia profissional do século XX.
Com relação a este aspecto, e em se tratando de uma série documental homogênea, não teria sentido examinar esta série evasivamente, de modo meramente impressionista. A História Serial constitui-se necessariamente de uma leitura da realidade social através da série que foi construída pelo historiador em função de um certo problema*. Não se trata, assim, de optar inicialmente pelo estudo de uma determinada sociedade para só depois buscar as fontes que permitirão este estudo ou o acesso a esta sociedade, como poderia se dar em outros caminhos historiográficos. O que o historiador serial estuda é precisamente a série: este é basicamente o seu recorte e a essência de seu objeto. E pode-se compreender como uma “série” tanto os fatos repetitivos que permitem ser avaliados comparativamente, como uma determinada documentação homogênea.
No primeiro sentido, François Furet fala em termos de uma serialização de fatos históricos que trazem entre si um padrão de repetitividade (fatos históricos que serão obviamente de um novo tipo, não mais se reduzindo aos acontecimentos políticos). No segundo sentido, ao examinar os novos paradigmas historiográficos surgidos no século XX, Michel Foucault assinala que “a história serial define seu objeto a partir de um conjunto de documentos dos quais ela dispõe”[3]. Isto abre naturalmente um grande leque de novas possibilidades:
“Assim, talvez pela primeira vez, há a possibilidade de analisar como objeto um conjunto de materiais que foram depositados no decorrer dos tempos sob a forma de signos, de traços, de instituições, de práticas, de obras, etc ...”[4]
Portanto, em que pese que fontes administrativas, estatísticas, testamentárias, policiais e cartoriais se prestem admiravelmente a um trabalho de História Serial, é possível também constituir em série documentação literária, iconográfica, ou mesmo práticas perceptíveis a partir de fontes orais. É mesmo possível constituir séries às quais não se pretenda necessariamente aplicar um tratamento quantitativo propriamente dito, mas sim uma abordagem mais tendente ao qualitativo – interessada ainda em perceber tendências, repetições, variações, padrões recorrentes e em discutir o documento integrado em uma série mais ampla, mas sem tomar como abordagem principal a referência numérica.
Uma das obras de Gilberto Freyre, por exemplo, constitui como série documental para o estudo da Escravidão no Nordeste os anúncios presentes em jornais da época – onde os grandes senhores anunciavam a fuga de escravos fornecendo descrições detalhadas dos mesmos, inclusive sinais corporais que falavam eloqüentemente das práticas inerentes à dominação escravocrata[5]. Não é propriamente o Escravo que é o seu objeto, mas “o Escravo nos anúncios de jornal”, como o próprio título indica. Ou seja, busca-se recuperar um discurso sobre o Escravo a partir de uma série que coincide com os periódicos examinados pelo autor; procura-se dentro desta série perceber uma recorrência de padrões de representação, mas também as singularidades e variações, e por trás destes padrões de representação os padrões de relações sociais que os geraram.
Quantitativos ou qualitativos, os caminhos historiográficos marcados pela ultrapassagem do documento isolado passaram a se integrar definitivamente ao repertório de possibilidades disponíveis para o historiador. Interessa-nos dar a perceber aqui que o recorte documental mostra-se como uma outra possibilidade para o historiador delimitar o seu tema. Definido este recorte, surgirá então uma delimitação temporal específica, que será válida para aquele recorte problemático e documental na sua singularidade, e não para outros. Dito de outra forma, em alguns destes casos é uma documentação que impõe um recorte de tempo, a partir dos seus próprios limites e das aberturas metodológicas que ela oferece.
Será bastante buscar uma exemplificação final com o próprio estudo pioneiro de Pierre Chaunu. O recorte de sua tese, estabelecido entre 1504 e 1650, é criado a partir de uma primeira data em que a documentação da ‘Casa de Contratação de Sevilha’ lhe permite uma construção estatística, e extingue-se no marco de uma segunda data quando a documentação já não permite uma avaliação quantitativa dos fatos (precisamente uma data relativa ao momento em que o comércio atlântico deixa de trazer a marca do predomínio espanhol e em que, consequentemente, a documentação de Sevilha se dilui como definidora de uma totalidade atlântica). O recorte documental problematizado, enfim, organizou o tempo do historiador.
O recorte serial é em boa parte dos casos um ‘recorte na fonte’. Mas existem, para além disto, outras possibilidades de recortar o tema de acordo com a fonte. Pode ser que o historiador pretenda examinar uma obra singularizada – ou para identificar o pensamento de um autor, ou para analisar a sua inserção nos limites da época – como se faz muito habitualmente nos campos da História das Idéias e da História Social das Idéias. Pode ser que o interesse seja examinar uma determinada produção cultural, e que uma crônica, um cancioneiro ou uma seqüência iconográfica surjam como objetos de interesse de uma História Cultural ou de uma História Social da Cultura. Um mito ou um conjunto de mitos pode se constituir simultaneamente nas fontes e objetos de um trabalho de Antropologia Histórica. As possibilidades de empreender ‘recortes na fonte’, conforme se vê, são inúmeras.
Sobre as possibilidades de utilização de técnicas seriais e quantificação para estudos de Micro-História, veja-se Carlo GIZBURG, “O nome e o como: troca desigual e mercado historiográfico” In A Micro-História e outros ensaios, Lisboa: Difel, 1991. p.169-178.
[4]
[4]
Michel FOUCAULT, “Sobre as maneiras de escrever a História” In Arqueologia das Ciências e História dos Sistemas de Pensamento. p.64.
[5]Gilberto FREYRE. O Escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX. São Paulo: Brasiliana, 1988.
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