O que é o Anacronismo? Em que momentos é legítimo trabalhar com categorias da própria época do historiador para analisar a História, e em que momentos o historiador desavisado desliza para a prática do Anacronismo - que corresponde à projeção indevida de um tempo sobre o outro? Como saber a diferença entre as duas situações?
No post anterior (http://ning.it/hxFuZD), discutíamos os usos dos conceitos pela História, e tocamos em uma questão importante para a formação dos historiadores, que era precisamente a necessidade de evitar isto que muitos teóricos costumam identificar como o pecado capital da historiografia: o Anacronismo. Na ocasião, evoquei como exemplo a palavra e o conceito de "feminismo", e seu uso indevido para sociedades anteriores ao século XX. Vamos retomar este exemplo, e imaginar que alguém proponha, como tema de Monografia ou de Tese, estudar "O Feminismo na Grécia Antiga" - predispondo-se a examinar as mulheres feministas da Atenas Clássica.
Porque isto é um Anacronismo? Simplesmente porqueneste caso, eu estou pressupondo que fazia parte do ambiente mental das mulheres da Grécia Antiga uma categoria de nossa própria época - surgida no contexto das lutas sociais das mulheres no século XX, da expansão da mulher pelo mercado de trabalho, e da sua conquista de direitos políticos. O Feminismo é um fenômeno das sociedades ocidentais contemporâneas, é inclusive um movimento sócio-político-cultural datado de nossa época, com manifestos específicos, uma concepção teórica, um certo diálogo de idéias e um inventário de ações específicas. Uma mullher da Grécia Antiga não podia ser feminista, mesmo no sentido lato desta palavra, da mesma maneira que Átila não podia ser "nazista". Quando alguém diz estes absurdos, está efetivamente projetando algumas categorias de nossa época dentro da cabeça, das ações e do ambiente social de seres humanos que não podiam pensar de acordo com estas categorias.
Vou tomar a liberdade de citar uma passagem do meu próprio livro, "O Campo da História" (2004):
"O que o historiador não deve fazer, com vistas a evitar os riscos do anacronismo, é inadvertidamente projetar categorias de pensamento que são só suas e dos homens de sua época nas mentes das pessoas de determinada sociedade ou de um determinado período. Para compreender os pensamentos de um chinês da época dos mandarins, terei de me avizinha dos códigos que (tanto quanto me for possível perceber) regeriam o universo mental dos chineses. Este exercício de compreender o 'outro chinês' é que tem que ser feito. Mas não é a análise que tem que ser chinesa" (BARROS, José D'Assunção. O Campo da História. Petrópolis: Editora Vozes, 2010, 6a edição, p.53).
Certa vez, na época em que eu fazia doutorado, tive uma pequena discussão acadêmica com um colega. Eu tinha utilizado, em determinado trecho de um trabalho sobre a Idade Média, uma perspectiva ou algum conceito que tinha sido proposto por Nietzsche (mas que poderia ter sido também proposto por Marx; pois apenas estou dando um exemplo). Esse colega insistia que eu estava sendo anacrônico, pois não poderia utilizar um autor como Nietzsche para falar da Idade Média (suponho que então, também não poderia utilizar Marx, que inclusive seria anterior a Nietzsche, para falar do 'modo de produção feudal'; também não poderia utilizar Koselleck, um autor recente, para falar de qualquer outra época).
Este antigo colega de doutorado, conforme penso, estava com uma compreensão totalmente equivocada sobre o que era o anacronismo. Se fôssemos adotá-la, não poderíamos utilizar as modernas técnicas da História Oral para examinar os aontecimentos a serem rememorados pelos sobreviventes do Nazismo, pois naquela época (a Segunda Guerra Mundial) não existia ainda a História Oral como subcampo disciplinar da História; não poderíamos utilizar a análise semiótica para examinar um romance do século XVIII, porque a Semiótica só surgiu na segunda metade do século XIX; não poderíamos falar em "crise do Império Romano" porque o conceito de "crise" só surgiu muito depois, na Medicina, e ainda posteriormente na História,com os trabalhos de Ernst Labrousse sobre a "crise dos preços no Antigo Regime" (ele mesmo, nesse caso, teria sido primeiro anacronista).
Tampouco poderíamos falar em "crescimento populacional" para as sociedades européias do século XIII, ou do século XV, porque o conceito de "crescimento populacional" é bem posterior. Para falar rigorosamente, não poderíamos mesmo indagar pelas condições de vida das mulheres na Grécia Antiga, se quisermos considerar que a preocupação com as condições de vida das mulheres nas sociedades misóginas constituem uma preocupação típica de nosso tempo.
Ora. As perguntas não só podem ser de nosso tempo, como são inevitavelmente de nosso tempo. A análise também tem que ser de nosso tempo. Alguns dos conceitos utilizados para analisar uma época antiga também podem perfeitamente ser de nosso próprio tempo -embora o historiador, quando está se referindo ao "outro" através do discurso que vem das fontes, também possa utilizar conceitos de uma outra época, já que ele trabalha com os dois níveis de conceitos, tal comovimos no último post (http://ning.it/hxFuZD). Com relação a isto, já discutimos suficientemente no texto anterior o fato de que uma das competências que precisam ser desenvolvidas pelos historiadores é saber bem a diferença: quando um determinado conceito pode ser empregado na anáise de uma outra sociedade, e quando a utilização deste conceito produz anacronismo.
De todo modo, é fundamental entendermos que a análise, os problemas, os modos de ver, as maneiras de falar na hora em que estamos escrevendo ao nível de historiadores (e não nos momentos em que estamos escrevendo ao nível das fontes) ... tudo isso tem que estar ligado à nossa própria época. Senão, estaríamos desprezando a grande conquista da historiografia ocidental a partir da contribuição dos historicistas da segunda metade do século XIX e de praticamente todos os historiadores a partir do século XX, que foi a de perceber com clareza incontornável que a História é construída pelo historiador de um lugar social e de uma época específica, e que este lugar dá à História por ele construída uma especificidade, uma tonalidade específica, um horizonte de expectativas, uma marca que é a de seu próprio tempo e também de todo umcomplexo de intersubjetividades que o envolve.
Isso, é claro, não significa em nenhum momento desconsiderarmos o fato de que, quando examinamos as fontes históricas, não podemos em nenhuma hipótese projetar categorias de pensamento da nossa época na mente das pessoas de uma outra época. Não podemos tentar enxergar um inglês da época digital em um homem da Inglaterra Puritana. Temos que entender uma outra época nos seus próprios termos quando estamos trabalhando ao nível das fontes (mesmo Ranke já se pronunciou sobre isto nos primórdios da historiografia científica). Todavia, na hora de fechar a nossa análise, temos de retornar à nossa época. As perguntas do historiador começam na sua própria época. A partir destas perguntas ele ilumina uma outra época, tentando enxergá-la nas suas fontes; e finalmente, ao analisar estas fontes, depois de tentar compreender como viviam os homens daquele período de seu passado, ele volta à sua época para fechar a análise. Isto é História.
O "anacronismo" só se dará se o historiador deformar os materiais do passado. Não é lícito chamar Safo, a sacerditosa grega da Ilha de Lesbos, de "feminista". Não é aceitável chamar o pintor Hieronymus Bosch (1450-1516), artista neerlandês do período renascentista, de "surrealista", mesmo que ele tenha desenhado algumas criaturas fantásticas a partir de uma extraordináriia imaginação que lhe dá uma singularidade incomum entre os pintores de sua própria época. Não tem nenhum sentido tentar enxergar uma estrutura sindical entre os escravos que se rebelaram sob a liderança de Spartacus, na Roma Antiga. Estes são anacronismos. Mas posso analisar a crise econômica que favoreceu o declínio do Império Romano. Como eu disse anteriormente: tenho que tentar compreender o chinês da era dos mandarins, mas não é a análise que tem de ser chinesa.
Tanto quanto possível, devo procurar me acercar dos modos de pensar de um chinês antigo, através das fontes, e tentar compreendê-lo. Um investigador criminal, para realizar o seu trabalho, também procura penetrar na mente do criminoso, imaginar suas idiossincrasias a partir das pistas e indícios deixadas na cena do crime. Esse exercício de se colocar no lugar do outro é importante; mas não é que você tenha (ou possa) se transformar nesse outro. Um Antropólogo que não soubesse bem a diferença entre uma coisa e outra, poderia acabar se transformando em Índio (um péssimo índio, claro), e nesse mesmo instante ele deixaria de ser Antropólogo. O Investigador Criminal não pode se transformar no Criminoso. O Historiador, para estudar os Cavaleiros Templários, não precisa se vestir com a túnica desta ordem e realizar a redação de seu texto em um castelo.
Usar Computador não é Anacronismo. Valer-mo-nos das sofisticadas técnicas de serialização, e da tecnologia que permite nos dias de hoje manipular em pouco tempo todo um universo de quantificação, não é Anacronismo. Dialogar com Marx, Nietzsche, Freud, Koselleck, Marc Bloch para entretecer uma rede teórica que ilumine de um modo específico um antigo período da História é perfeitamente possível.
Desconhecer que as fontes do início do Brasil-República,ao mencionarem a palavra "operário", tem em vista algo diferente do que hoje entendemos por um operário - isso é um Anacronismo. Acreditar que os romanos da época do primeiro saque de Roma (410 d.C) tinham o mesmo tipo de desespero que que os americanos que vivenciaram a crise inspirada pelos atentados que destruíram o World Trade Center em setembro de 2001,isso seria anacronismo. Podemos até comparar contrastivamente estes eventos, mas não para confundi-los. De igual maneira, podemos utilizar perfeitamente o conceito de "crise" para entender certos aspectos da sociedade e da economia da Roma Antiga, ao nível de nossa análise historiográfica, sem pensarmos que os romanos daquela época pensavam estar em crise, no sentido que hoje atribuiríamos a esta palavra. Podemos empregar conceitos da moderna psicologia e psicanálise para analisar períodos antigos, não podemos é colocar Napoleão no Divã. Saber a diferença entre uma coisa faz parte do complexo de competências que precisa ser desenvolvidopelos historiadores em formação. Posso utilizar um conceito de Nietzsche em minha análise, não posso é projetar a "crítica do conhecimento" desenvolvida por Nietzsche na mente de um humanista do século XVI.
A habilidade do Historiador é trabalhar com duas temporalidades da maneira adequada, a sua própria, e a do período que está examinando. Também precisa saber fazer a distinção entre um conceito a ser operacionalizado ao nível de sua análise, e uma categoria de pensamento que é a dos homens de uma outra época, no momento em que está trabalhandocom as fontes e tentando compreendê-los.
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Sobre o Anacronismo, ver BARROS, José D'Assunção. O Campo da História. Petrópolis: Editora Vozes, 2011, 8a edição.
Visite o site do livro "O Campo da História"
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